quarta-feira, 28 de março de 2012

Tentativa.


Estatística

Se tem uma coisa que eu aprendi com a vida foi a nunca confiar em homens com uma cova no queixo: todos cafajestes! E Afonso, além da marca de volúpia, possuía um ar de bom moço e os sapatos muito bem engraxados. Totalmente suspeito. A combinação de suas características era tão inédita que em tudo argumentava contra os dados do meu estudo físico-comportamental do homem. Desde muito nova me ocupo em estabelecer associações entre a fisionomia de uma pessoa e seus traços de personalidade. Hoje, tenho uma longa lista que me possibilita formular expectativas a respeito do comportamento de qualquer indivíduo: é quase certa a avareza daqueles de nariz torto e o pessimismo dos de pé chato. Claro que nem sempre as estatísticas da lista são acertadas. Mas exceções não passam exceções.

Conheci Afonso no bar que costumo frequentar às sextas-feiras. Estava sozinha tomando um drink e ele se aproximou. Não disse nada. Permaneceu um bom tempo de pé e imóvel a menos de dois metros de minha mesa. Notei falhas tentativas de desviar seu olhar do meu. Por fim ele toma uma atitude: se dirige a mim e pergunta se eu aceito uma carona para casa. Achei um pouco ousado e precipitado da parte dele... Mas chovia muito e eu estava por demais interessada num estudo empírico daquela espécie tão estranhamente paradoxal; decidi aceitar a carona. Confesso que tive um pouco de medo. Afonso não me pareceu muito confiável... Sabe-se lá o que poderia fazer comigo. Mesmo assim acatei a minha intuição científica. Eu não podia deixar escapar uma possível exceção para a lista. E se ele estivesse mal intencionado, não seria de todo o mal... O rapaz era bem apessoado.

Ele me conduziu até seu carro e abriu a porta para que eu entrasse. Durante todo o caminho até minha casa ele nada disse. Apenas concordava com os comentários que eu me esforçava para fazer. Também em nenhum momento ele me olhou. Ao mesmo tempo que parecia extremamente concentrado na tarefa de dirigir, mostrava-se bem à vontade com um sorriso congelado em seu rosto. Eu já estava incomodada com todo aquele silêncio e num impulso que não pude domar, liguei o rádio. Afonso automaticamente iniciou um movimento vertical com a cabeça, tentando acompanhar o ritmo da música. Mas seu silêncio permaneceu; e meu incomodo evoluiu para a extrema angustia.

Chegando ao portão de minha casa, perguntei se ele não gostaria de entrar. Eu não podia deixar meu objeto de pesquisa ir embora!

- Deixa para uma próxima.

- Você vai me dispensar assim?

- Mas eu já te dei uma carona.

- Não me diga que era só isso que você queria.

- Sim.

- Você não me engana...

- Desculpe se me fiz entender mal. Mas agora eu realmente preciso ir.


No mesmo instante a mulher saltou da poltrona do carona para o meu colo. Tirou sua blusa e com ela amarrou meus braços. Ela me empurrou para fora do carro e me arrastou para dentro de sua casa. Com uma corda que havia no chão da sala, ela terminou de me imobilizar, prendendo minhas mãos aos meus pés e deixando-me assim de quatro. Num impulso predatório, a mulher montou em minhas costas:

- Você se considera uma pessoa extrovertida?

- Como?!

- Responde!

- Não muito...

- Você é tímido?

- Eu não estou entendendo...

- Responde!

- Às vezes...

- Praia ou montanha?

- Montanha?

- Por quê você me ofereceu uma carona?

- Porque você parecia sozinha e triste. Pensei que eu estaria ajudando...

Eu dei um tapa nele e em seguida o beijei.

- Esta seria a resposta correta.

- Eu lhe asseguro que não.

- Claro que não... Você não se contentaria com tão pouco. Sexo! Era isso que você queria. Sexo ocasional.

- Eu juro que não.

- Mentira!

Ela então voltou a me bater, porém dessa vez com tapas seguidos e com mão mais pesada. Eu já estava apavorado com aquela situação...

- Eu senti pena de você! Só isso! Pena da sua solidão!

- E por que ficou tanto tempo me olhando? Precisa de tanta coragem para oferecer uma carona?

- Talvez...

- Mentira!

- Então por que não estamos transando agora?

- Não! Não tente me enganar!

- E por que eu não posso só ter sido gentil com você?

- Porque você tem uma cova no queixo!


Uma exceção. Pior! A única exceção. Era unânime a cafajestagem dos de queixo marcado! Agora minha estatística iria de cem a noventa e nove por cento de casos! Eu não podia deixar isso acontecer... O único cem por cento da minha lista não podia ser simplesmente apagado!


- Peço desculpas se te decepcionei... Não é a primeira vez que minha cova ilude uma mulher. Mas agora que tudo já foi esclarecido; será que você poderia me desamarrar?

A mulher começou a bufar. O movimento de sua respiração repercutia como um chicote em sua coluna. Ela avançou em minha direção, e com a blusa que prendia minhas mãos, começou a me sufocar. Eu tentei gritar, tentei me soltar, mas aquela mulher estava possuída por força assustadoramente selvagem. Tentei resistir até o momento em que não pude mais. Caí morto no carpete da sala. No mesmo instante, lamentei não ter seguido a intuição que me dizia para não oferecer aquela carona... Se tem uma coisa que eu aprendi com a vida foi a nunca confiar em mulheres de lábios finos.



3 comentários:

  1. é seu nat? maravilhoso, eu prefiro quando eles não se esclarecem, quando o diálogo é uma disputa.

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  2. adoro quando tudo parte de uma descrição

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  3. É sim, Bê!
    Só agora vi seu comentário...

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