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segunda-feira, 2 de abril de 2012

Um olhar sobre a cidade:



Amor à primeira vista

Os dois estão convencidos de que foi um sentimento súbito o que os juntou.
É bela uma certeza como essa, mas é mais bela a incerteza.
Acham que por não se terem conhecido antes, nunca houve nada entre eles.
E o que diriam as ruas, escadas, corredores, onde há muito podiam se cruzar?
Queria perguntar-lhes se não se lembram -
Na porta giratória talvez, um dia cara a cara? Em meio à multidão um 'com licença'? No telefone a voz - engano? Mas conheço sua resposta.
Não, não se lembram. Ficariam surpreendidos de saber, que já faz tempo, o acaso brincava com eles. Não preparado ainda a transformar-se para eles num destino, aproximava-se e os afastava,
cortava-lhes o caminho e, abafando a gargalhada, saltava para o lado. Houve sinais, signos, só que ilegíveis. Talvez há três anos atrás ou na terça-feira passada certa folha voou de um ombro para o outro. Houve algo perdido e recolhido. Quem sabe, uma bola já no bosque da infância. Houve maçanetas e campainhas em que antes já o toque se punha no toque. As malas lado a lado no depósito de bagagem. Talvez, numa certa noite, o mesmo sonho, apagado imediatamente depois de acordar. Pois cada princípio é apenas uma continuação, e o livro de eventos sempre aberto no meio.

O primeiro amor

Dizem que o primeiro amor é o mais importante. É muito romântico, mas não é o meu caso. Algo entre nós houve e não houve, deu-se e perdeu-se. Não me tremem as mãos quando encontro pequenas lembranças, aquele maço de cartas atadas com um cordel,se ao menos fosse uma fita.
O nosso único encontro, passados anos, foi uma conversa de duas cadeiras junto a uma mesa fria.
Outros amores continuam até hoje a respirar dentro de mim. A este falta fôlego para suspirar.
No entanto, sendo como é, não lembrado, nem sequer sonhado, consegue o que os outros não conseguem: acostuma-me com a morte.



quinta-feira, 29 de março de 2012

Paolo Cugini comenta a teoria sobre o "amor líquido" de Zygmunt Bauman


"Percebemos que novos atores estão passando no palanque da história, mas não conseguimos detectá-los, tão rápida é a passagem deles." FLUXO, MOVIMENTO LATERAL, PASSAGENS

"As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram este tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar o caminho de volta (bauman, 2005b, p.9)." LINDO. Podia ser texto

"A sociedade líquida não desceu do céu, não se produziu do nada, improvisadamente, mas foi o fruto maduro do desmoronamento da modernidade, ou seja, do processo do derretimento dos sólidos formados e elaborados na modernidade." (Repare que Neon é um gás. O que dá o efeito fluorecente na luz é a retificação do ar líquido. POÉTICO! Nosso edifício em plongê, o prédio desabando, tá tudo ai.)

"No mundo fluido onde os valores são de natureza cambiante e as regras instáveis, o máximo que deve ser feito nos relacionamentos afetivos é reduzir riscos, evitar a perda de opções que se traduz na capacidade de terminar quando se deseje." (A forma de "amor"que tem aparecido nas composições)

“Como escapar à dor e a humilhação? A forma natural é matar ou humilhar seu algoz ou benfeitor. Ou encontrar outra pessoa mais fraca para triunfar sobre ela” (bauman, 2003, p. 110)." (A árvore, o touro, a derrubada)

“E os fluidos são assim chamados porque não conseguem manter uma forma por muito tempo e, ao menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam mudando de forma sob a influência até mesmo das menores forças” (bauman, 2005c p. 57)."

"Permanecer fixo, com uma identidade fixa, neste mundo rápido e fluido, não é aconselhável. A liquidez exige dos indivíduos a capacidade de não se deixar identificar. Quem é identificado, é perdido."


- Esses trechos foram destacados pela Susana! Eu e ela estamos estudando, ou melhor, tentando compreender a nova face de modernidade que estamos vivendo. O Bauman ainda fala sobre pós-modernidade. Outros teóricos, transgridem o termo e vão falar em hipermodernidade. Como se a "pós" nunca, de fato, tivesse existido. Ou seja, o que foi chamado de "pós" é hoje visto como uma passagem para a "hiper". Na hipermodernidade, os valores da modernidade são revistos, mas não ignorados. Uma outra face da modernidade se revela. Acreditamos que beber um pouco nessas teorias e teóricos maravilhosos possa ajudar a "compreender"  a trajetória temática que estamos vivenciando na construção deste espetáculo. Posto aqui no blog, pois esses trechos foram muito valiosos para eu me reapropriar dos materiais, buscando, sempre, uma nova visão e compreensão deles. Espero que também possa servir para vocês. Para clarear a mente e dar mais vibração ao corpo.

ps: as partes em negrito são comentários ou grifos da Su.
ps2: quem quiser ler o artigo completo, manda um email que a gente envia!

divirtam-se.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Depois desse dia.


Num apartamento perdido na cidade,
Alguém está tentando acreditar
Que as coisas vão melhorar ultimamente.
A gente não consegue
Ficar indiferente debaixo desse céu
No meu apartamento
Você não sabe o quanto voei,
O quanto me aproximei de lá da Terra
Num apartamento perdido na cidade,
Alguém está tentando acreditar
Que as coisas vão melhorar ultimamente.
No meu apartamento
Você não sabe quanto voei,
O quanto me aproximei de lá da Terra
As luzes da cidade não chegam as estrelas sem antes me buscar.
Na medida do impossível tá dando pra se viver.
Na cidade de São Paulo, o amor é imprevisível
Como você e eu e o céu.
Num apartamento perdido na cidade
Alguém está tentando acreditar
Que as coisas vão melhorar ultimamente
A gente não consegue
Ficar indiferente debaixo desse céu.
No meu apartamento
Você não sabe o quanto voei
O quanto me aproximei de lá da Terra, não.
As luzes da cidade não chegam as estrelas sem antes me buscar.
Na medida do impossível tá dando pra se viver
Na cidade de são paulo, o amor é imprevisível
Como você e eu e o céu
Lá vou eu - Zélia Duncan



sábado, 17 de março de 2012

Um monólogo

Infelizmente eu não sou tua Ofélia e você, tão pouco, é meu Hamlet. Essa história não merece o frio da Dinamarca. Merece o calor. Um clima tropical, agradável, cheio de flores e outras bobagens coloridas. Uma flor pode brotar de uma pedra, mas não de cubo de gelo. Eu, pelo menos, nunca vi. O importante é que no calor o cadáver apodrece mais rápido. Num instante, o cheiro fétido exala o mais puro fogo fátuo e então urge-se enterrar o defunto. Pô-lo debaixo da terra. Selá-lo de vez no ataúde, antes que a situação se torne incômoda e que a pessoa que um dia amamos e de quem sentiremos eternas saudades se torne um pedaço de esterco, uma carne pútrida, saindo ainda por cima, da obscenidade do corpo morto, fluídos pustulentos e uma orgia de moscas e formigas. É por isso, amor, espero que entenda, que eu quero um dia ensolarado, o sol lindo e pessoas indo à praia.... No frio isso não seria possível. Sabia que Shakespeare vivesse em algum país tropical ele nunca teria feito Romeu e Julieta? Sabia? Por que se Julieta tivesse tomado o veneno, no dia seguinte, seria enterrada viva, e a sua morte seria em vão, movida por um desespero idiota e precipitado, o golpe teatral seria pobre, não seria nem mesmo uma tragédia, seria mais uma fatalidade, tal qual aqueles acidentes de trânsitos, ou aqueles suicídios sem graça, coisa de jornal de qualquer maneira. O frio é bonito. Favorece o isolamento. Pensei em ir à Europa um dia desses. Você se lembra? Você disse que não: problemas de dinheiro. Talvez fosse o problema da vida a dois. Suportar-se demais em troca de um bem estar. Em troca de uma harmonia que nada mais é do que a resignação. A convivência é foda, é uma merda. Quem convive não vive. É aceitar como bem amado alguém que na verdade não passa de um inquilino na sua vida. Você nunca parou para pensar nisso? Deixa para lá. O amor não é belo, meu querido. É o que há de mais animalesco na alma. Amor é uma coisa que chega bem perto do canibalismo. E você sempre se despedia dizendo que me ama. Lembra? Se eu fosse uma pedra, você também falaria a mesma coisa, contanto que estivesse casado com ela. Tanto faz. Aquilo era práxis. Burocracia. Sabe por quê? Não? Por que todo mundo que fala ‘eu te amo’ quer ouvir ‘um eu também’. Isso é burocracia, meu bem, é o puro método. Aritmética! Essa é a palavra! Se tu és o amor da minha vida, eu também sou o amor da tua vida, o que quer dizer que se eu te amar você também vai me amar, justamente por que eu te amo, em tese. Tirando a prova dos nove sempre vai dar zero. Não tem saída. Fala-se exclusivamente o que se quer ouvir. Isso é harmonia, isso é zero. É transar sem se dar a dignidade de receber um tapa sequer, sem ao menos um puxão de cabelo ou uma sacanagem dita laicamente ao pé do ouvido. Não. Eu me nego. É necessário violência. É necessário se aventurar no próprio corpo, ou condenar-se o conviver um domingo de cada vez. Doses homeopáticas de antropofagia. Era disso que eu precisava e você nunca percebeu! Mas ainda não é tarde. Logo hoje: um dia lindo! Você tão carinhoso ao meu lado. Você sempre teve cabelos sedosos. Hoje você não foi trabalhar. Que bom. Fiz a comida que você gosta. Como sempre. A pena é que você só passe o final de semana aqui. Dois dias, acho que três, estourando. Mas não tem problema. Sempre te recebo de braços e pernas abertas. Mesmo se acidentalmente você me deixar com um olho roxo ou se, alterado, você me chame de puta. Tudo sara. Tudo se esquece. Em troca de quê? Da convivência. Conviver é condenar-se. Mas hoje, meu amor, tem cerveja na geladeira. Se exagerares pode me espancar depois. Hoje eu deixo. O roxo na carne, a ardência da mão contida na pele e os palavrões ressoando na cabeça, no chuveiro, tudo vai embora. Toda mulher rogada se confessa com o chuveiro, e lá, deslizando as costas nos azulejos até se sentar no chão, num retorno involuntário a posição fetal, a água acaricia os hematomas e no ralo o corpo se confronta com a incoerência de querer torna-se líquido e desaparecer em qualquer buraco. O banheiro sempre foi a igreja desta casa. Tu sabes muito bem. Mas você não é o culpado. Não se preocupe. Talvez a culpa seja da sociedade. Não sei. Não quero filosofar. Mas não pense que eu sou uma dessas Ofélias. Infelizmente, eu não estou louca. Na verdade nunca estive tão sã. Calculei tudo, como quem faz uma complicada decoração de natal, com enfeites e luzes, passa dois dias imaginando como vai instalar piscas-piscas em toda a casa, põe o plano em prática, liga tudo na tomada e no regozijo de seu espetáculo particular se deleita, como se aquilo, em algum momento, não fosse premeditado, como se aquilo tivesse um quê de magia que só com a energia circulando nos pequenos filamentos de tungstênio fosse possível consumar de vez a obra; como se ao finalizar um quadro o pintor regozijado assinasse seu nome no canto da tela e se não fosse essa pequena assinatura o quadro não teria sentido, seria apenas um nômade; foi desse jeito, com esta apoteose, que vi, aos poucos, a invisível pirotecnia do veneno se diluindo na água, tuas pupilas dilatadas como se tua alma estivesse caindo dentro de um poço, tua baba escorrendo pela boca, a tua tentativa de respirar sem ar no peito, teu último olhar, ternamente desesperado, me interrogando o porquê... ‘você sabe o porquê’, respondia eu, tentando ainda te socorrer, perguntando com lágrimas histéricas ‘o que foi?’, ‘o que foi? Você está bem?’. Teu corpo pesado se repousou nos meus braços, foi se entregando à gravidade, tive que segurar tua nuca, senão ela cedia para trás, aos poucos fui me abaixando, até ficar de joelhos e te ter no meu colo, e lá, com o perfil do rosto comprimindo meus seios sem leite, deste teu derradeiro suspiro tentando não sei se me abraçar ou se me arranhar, mas a morte, enfim trouxe o alento, e depois, aliviado, tu parecias um menino dormindo, parecia que tinhas saído do meu útero... Shhhhhh! Você não ouviu, mas eu também te amo.



quarta-feira, 7 de março de 2012

Eu parei para pensar nisso aqui.

A ideia de usar a "dancinha" do Rafa como prólogo do espetáculo me atravessou hoje no percurso de casa para o ensaio. Experimentar a ideia foi bastante interessante... Eu diria fascinante. Escrevo para tentar compreender melhor o que ela inaugura e também para dividir com vocês os meus pensamentos. A "dancinha" enquanto abertura se manifesta como algo que eu poderia classificar como nível zero. Ou seja, ela abre espaço para que qualquer tipo de informação ou material sejam apresentados depois.  Ela é o drama neutro que abre as portas para novos e interligados dramas sujos. Ela namora, critica, brinca com o corpo e com o espaço na suavidade de um deboche que é físico. Ela esboça, com crueldade e um ótimo uso do corpo e do tempo, as qualidades: duração, repetição, esforço, precisão e refinamento. Ela, ao mesmo tempo que recebe, também distancia o espectador da obra, faz com que ele se interrogue sobre o que virá depois. Faz com que ele se pergunte, assim como eu venho me perguntando: sobre o que e sobre quem este espetáculo fala? Então, leio a "dancinha" como um lugar poético para a fuga cotidiana, para o desbravamento do corpo em seu limite e suor, para a fuga das relações cansadas e da estranheza que é ser um ser casal; como uma espécie de espelho social, uma viagem do micro ao macro, o caminho das pedras a ser percorrido por todos os corpos que, logo em seguida, serão apresentados. Leio como quem lê um romance longo, faz uma viagem para Lisboa ou toma um bom café da manhã. Como quando preparamos o espectador para despertar, para acordar o corpo, abrir os olhos e atentar a escuta para os mínimos detalhes. Os olhos que se movem, a boca que esboça palavras ou números, as mãos que dedilham, os cotovelos que brincam  no ar de ir e voltar. Gosto da "dancinha" em razão de sua pureza urbana e nada bucólica. Por ora penso em treino de dança, bailarinos em movimento que tentam atingir a perfeição na execução de um gesto banal. Como é difícil presentar o cotidiano, a ação básica de mover-se no dia a dia. Depois penso no corpo-máquina, no homem-bomba, no cansaço dos operários na repetição diária do trabalho mal pago. Aí penso nas relações de poder, na flexibilização delas, nas lacunas que deixam abertas e que precisamos ocupar. Penso ainda nas verdadeiras empresas que são os relacionamentos afetivos, na manutenção do bem-amado, do bem-querer. É bom o bem-casado? Você trouxe o que eu te pedi - ele pergunta e ela dança. Rio alto. Na verdade, tenho medo de rir. Tem graça ver alguém cansado? Me questiono. Questiono a obra e seu lugar. Depois dela, da "dancinha" alguém entra e, de costas, canta uma música. Essa música então ressignifica tudo. Ou melhor, ela tenta. Tenta por ordem no recinto, trazer sentido e razão para todo aquele alvoroço contido que, inicialmente, foi apresentado. A música embala o Rafa que, inconscientemente, micro-muda a qualidade de seus movimentos. Agora eu não sei mais quem dança... É ele quem comanda a música ou por ela é comandado? Quem ali, no auge daquela dor, canta para quem? Quem teria coragem de denunciar: FOCO, SUPORTE. Não sei. Este não-saber me alegra, prossigo vivo, questionando o espaço, tudo e todos. Todos entram. Aí, acabou chorare, mas não ficou tudo lindo. É pior, é grave. São mais pessoas, mais gente, mais povo, mais corpos e mais cabeças. Tudo Dói, Caetano batizou uma canção com este nome e, em seguida, lhe deu de presente para a Gal.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Para Bel.


Bel, compadecemos dessa dor. Acho de uma beleza única este material. Vamos pensar sobre ele? Partiturar? Experimentar partes em jogo? Desenvolver? Que bela citação, que bela consideração sobre aquilo que se move sem rédea e em direção ao nada. Vamos a luta!

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas",Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59