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quarta-feira, 4 de abril de 2012

Trechos de "A Dominação Masculina", de Pierre Bourdieu

"A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada."

"Como explicar que a visão androcêntrica de um mundo em que as disposições ultra-masculinas encontram condições das mais favoráveis à sua realização nas estruturas da atividade agrária -- ordenada segundo a oposição entre o tempo de trabalho, masculino, e o tempo de produção, feminino -- e também na lógica de uma economia de bens simbólicos plenamente realizada tenha podido sobreviver, sem atenuações nem concessões, às profundas mutações que afetaram as atividades produtivas e a divisão do trabalho (...)? E como registrar esta aparente perenidade, que contribui igualmente, e muito, para conferir a uma construção histórica feições de uma essência natural, sem nos expormos a retificá-la inscrevendo-a na eternidade de uma natureza?"

"Assim, uma apreensão verdadeiramente relacional da relação de dominação entre os homens e as mulheres, tal como ela se estabelece em todos os espaços e subespaços sociais, (...) leva a deixar em pedaços e imagem fantasiosa de um 'eterno feminino', para fazer ver melhor a permanência da estrutura da relação de dominação entre os homens e as mulheres, que se mantém acima das diferenças substanciais de condição, ligadas aos momentos históricos e às posições no espaço social. (...) Isso obriga, enfim, e principalmente, a perceber a vaidade dos apelos ostentatórios dos filósofos 'pós-modernos' no sentido de 'ultrapassar os dualismos': estes, profundamente enraizados nas coisas (as estruturas) e nos corpos, não nasceram de um simples feito de nominação verbal e não podem ser abolidos com um ato de magia performática -- os gêneros (...) estão inscritos nos corpos e em todo um universo do qual extraem sua força. É a ordem dos gêneros que fundamenta a eficácia performativa das palavras."

"O 'amor puro', esta arte pela arte do amor, é uma invenção histórica relativamente recente, como a arte pela arte, o amor puro da arte, com o qual ele tem relação, histórica e estruturalmente. (...) Conseguindo sair da instabilidade e da insegurança características da dialética da honra que, embora baseada em uma postulação de igualdade, está sempre exposta ao impulso do dominador da escalada, o sujeito amoroso só pode obter o reconhecimento de um outro sujeito, mas que abdique, como ele o fez, da intenção de dominar. Ele entrega livremente sua liberdade a um dono que lhe entrega igualmente a sua, coincidindo com ele em um ato de livre alienação indefinidamente afirmado (através da repetição, sem redundâncias, de 'eu te amo')."

"Reconhecimento mútuo, troca de justificações de existência e de razões de ser, testemunhos recíprocos de confiança, signos, todos da total reciprocidade que confere ao vínculo em que se encerra a díade amorosa (...) o poder de rivalizar vitoriosamente como todas as consagrações que ordinariamente se pedem às instituições e ritos da sociedade."

sábado, 17 de março de 2012

Um monólogo

Infelizmente eu não sou tua Ofélia e você, tão pouco, é meu Hamlet. Essa história não merece o frio da Dinamarca. Merece o calor. Um clima tropical, agradável, cheio de flores e outras bobagens coloridas. Uma flor pode brotar de uma pedra, mas não de cubo de gelo. Eu, pelo menos, nunca vi. O importante é que no calor o cadáver apodrece mais rápido. Num instante, o cheiro fétido exala o mais puro fogo fátuo e então urge-se enterrar o defunto. Pô-lo debaixo da terra. Selá-lo de vez no ataúde, antes que a situação se torne incômoda e que a pessoa que um dia amamos e de quem sentiremos eternas saudades se torne um pedaço de esterco, uma carne pútrida, saindo ainda por cima, da obscenidade do corpo morto, fluídos pustulentos e uma orgia de moscas e formigas. É por isso, amor, espero que entenda, que eu quero um dia ensolarado, o sol lindo e pessoas indo à praia.... No frio isso não seria possível. Sabia que Shakespeare vivesse em algum país tropical ele nunca teria feito Romeu e Julieta? Sabia? Por que se Julieta tivesse tomado o veneno, no dia seguinte, seria enterrada viva, e a sua morte seria em vão, movida por um desespero idiota e precipitado, o golpe teatral seria pobre, não seria nem mesmo uma tragédia, seria mais uma fatalidade, tal qual aqueles acidentes de trânsitos, ou aqueles suicídios sem graça, coisa de jornal de qualquer maneira. O frio é bonito. Favorece o isolamento. Pensei em ir à Europa um dia desses. Você se lembra? Você disse que não: problemas de dinheiro. Talvez fosse o problema da vida a dois. Suportar-se demais em troca de um bem estar. Em troca de uma harmonia que nada mais é do que a resignação. A convivência é foda, é uma merda. Quem convive não vive. É aceitar como bem amado alguém que na verdade não passa de um inquilino na sua vida. Você nunca parou para pensar nisso? Deixa para lá. O amor não é belo, meu querido. É o que há de mais animalesco na alma. Amor é uma coisa que chega bem perto do canibalismo. E você sempre se despedia dizendo que me ama. Lembra? Se eu fosse uma pedra, você também falaria a mesma coisa, contanto que estivesse casado com ela. Tanto faz. Aquilo era práxis. Burocracia. Sabe por quê? Não? Por que todo mundo que fala ‘eu te amo’ quer ouvir ‘um eu também’. Isso é burocracia, meu bem, é o puro método. Aritmética! Essa é a palavra! Se tu és o amor da minha vida, eu também sou o amor da tua vida, o que quer dizer que se eu te amar você também vai me amar, justamente por que eu te amo, em tese. Tirando a prova dos nove sempre vai dar zero. Não tem saída. Fala-se exclusivamente o que se quer ouvir. Isso é harmonia, isso é zero. É transar sem se dar a dignidade de receber um tapa sequer, sem ao menos um puxão de cabelo ou uma sacanagem dita laicamente ao pé do ouvido. Não. Eu me nego. É necessário violência. É necessário se aventurar no próprio corpo, ou condenar-se o conviver um domingo de cada vez. Doses homeopáticas de antropofagia. Era disso que eu precisava e você nunca percebeu! Mas ainda não é tarde. Logo hoje: um dia lindo! Você tão carinhoso ao meu lado. Você sempre teve cabelos sedosos. Hoje você não foi trabalhar. Que bom. Fiz a comida que você gosta. Como sempre. A pena é que você só passe o final de semana aqui. Dois dias, acho que três, estourando. Mas não tem problema. Sempre te recebo de braços e pernas abertas. Mesmo se acidentalmente você me deixar com um olho roxo ou se, alterado, você me chame de puta. Tudo sara. Tudo se esquece. Em troca de quê? Da convivência. Conviver é condenar-se. Mas hoje, meu amor, tem cerveja na geladeira. Se exagerares pode me espancar depois. Hoje eu deixo. O roxo na carne, a ardência da mão contida na pele e os palavrões ressoando na cabeça, no chuveiro, tudo vai embora. Toda mulher rogada se confessa com o chuveiro, e lá, deslizando as costas nos azulejos até se sentar no chão, num retorno involuntário a posição fetal, a água acaricia os hematomas e no ralo o corpo se confronta com a incoerência de querer torna-se líquido e desaparecer em qualquer buraco. O banheiro sempre foi a igreja desta casa. Tu sabes muito bem. Mas você não é o culpado. Não se preocupe. Talvez a culpa seja da sociedade. Não sei. Não quero filosofar. Mas não pense que eu sou uma dessas Ofélias. Infelizmente, eu não estou louca. Na verdade nunca estive tão sã. Calculei tudo, como quem faz uma complicada decoração de natal, com enfeites e luzes, passa dois dias imaginando como vai instalar piscas-piscas em toda a casa, põe o plano em prática, liga tudo na tomada e no regozijo de seu espetáculo particular se deleita, como se aquilo, em algum momento, não fosse premeditado, como se aquilo tivesse um quê de magia que só com a energia circulando nos pequenos filamentos de tungstênio fosse possível consumar de vez a obra; como se ao finalizar um quadro o pintor regozijado assinasse seu nome no canto da tela e se não fosse essa pequena assinatura o quadro não teria sentido, seria apenas um nômade; foi desse jeito, com esta apoteose, que vi, aos poucos, a invisível pirotecnia do veneno se diluindo na água, tuas pupilas dilatadas como se tua alma estivesse caindo dentro de um poço, tua baba escorrendo pela boca, a tua tentativa de respirar sem ar no peito, teu último olhar, ternamente desesperado, me interrogando o porquê... ‘você sabe o porquê’, respondia eu, tentando ainda te socorrer, perguntando com lágrimas histéricas ‘o que foi?’, ‘o que foi? Você está bem?’. Teu corpo pesado se repousou nos meus braços, foi se entregando à gravidade, tive que segurar tua nuca, senão ela cedia para trás, aos poucos fui me abaixando, até ficar de joelhos e te ter no meu colo, e lá, com o perfil do rosto comprimindo meus seios sem leite, deste teu derradeiro suspiro tentando não sei se me abraçar ou se me arranhar, mas a morte, enfim trouxe o alento, e depois, aliviado, tu parecias um menino dormindo, parecia que tinhas saído do meu útero... Shhhhhh! Você não ouviu, mas eu também te amo.



segunda-feira, 5 de março de 2012

Para Bel.


Bel, compadecemos dessa dor. Acho de uma beleza única este material. Vamos pensar sobre ele? Partiturar? Experimentar partes em jogo? Desenvolver? Que bela citação, que bela consideração sobre aquilo que se move sem rédea e em direção ao nada. Vamos a luta!

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas",Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59

Para Nat e Cacá.

quinta-feira, 1 de março de 2012

As relações de poder

- que o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis;

- que as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimentos, relações sexuais), mas lhes são imanentes; são os efeitos imediatos das partilhas, desigualdades e desequilíbrios que se produzem nas mesmas e, reciprocamente, são as condições internas destas diferenciações; as relações de poder não estão em posição de superestrutura, com um simples papel de proibição ou de recondução; possuem, lá onde atuam, um papel diretamente produtor;

- que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social. Deve-se, ao contrário, supor que as correlações de força múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente, em troca, procedem as redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos de série, convergências desses afrontamentos locais. As grandes dominações são efeitos hegemônicos continuamente sustentados pela intensidade de todos estes afrontamentos;

- que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas. Se, de fato, são inteligíveis, não é porque sejam efeito, em termos de causalidade, de uma outra instância que as explique, mas porque atravessadas de fora a fora por um cálculo: não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos. Mas isso não quer dizer que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito, individualmente; não busquemos a equipe que preside sua racionalidade; nem a casta que governa, nem os grupos que controlam os aparelhos do Estado, nem aqueles que tomam as decisões econômicas mais importantes, gerem o conjunto da rede de poderes que funciona em uma sociedade (e a faz funcionar); a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem -- cinismo local do poder -- que, encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto: lá, a lógica ainda é perfeitamente clara, as miras decifráveis e, contudo, acontece não haver mais ninguém para tê-las concebido e poucos para formulá-las: caráter implícito das grandes estratégias anônimas, quase mudas, que coordenam táticas loquazes, cujos "inventores" ou responsáveis quase nunca são hipócritas;

- que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo), esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. Deve-se afirmar que estamos necessariamente "no" poder, que dele não se "escapa", que não existe, relativamente a ele, exterior absoluto, por estarmos inelutavelmente submetidos à lei? Ou que, sendo a história ardil da razão, o poder seria o ardil da história -- aquele que sempre ganha? Isso equivaleria a desconhecer o caráter estritamente relacional das correlações de poder. Elas não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel do adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos de resistência eståo presentes em toda a rede de poder. Mas isso não quer dizer que sejam apenas subproduto das mesmas, sua marca em negativo, formando, por oposição à dominação essencial, um reverso inteiramente passivo, fadado à infinita derrota. As resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é por isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada. Elas são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como o interlocutor irredutível. Também são, portanto, distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento. Grandes rupturas radicais, divisões binárias e maciças? Às vezes. É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizar exatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistência atravessa as estratificações sociais e as unidades individuais. E é certamente a codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma revolução, um pouco à maneira do estado que repousa sobre a integração institucional das relações de poder.

(Michel Foucault)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Se puderem, perguntem ao pó:


Uma contribuição para Cacá e Gunnar. Ao meu ver, bons caminhos para o desdobramento da relação já iniciada no diálogo de "Uma linda mulher". Possíveis brechas, possíveis encontros e desencontros. Gosto, especialmente, dos diálogos curtos e do fluxo de pensamento da personagem masculina. Gosto, também e ainda mais, da forma como a personagem se coloca em relação ao corpo da Camilla e a maneira sexual e instigante de como a descreve.


AQUI:

Uma noite, atendi a uma batida na porta e lá estava ela.

- Camilla!

Entrou e sentou-se na cama, com algo debaixo do braço, um maço de papéis. Olhou para o meu quarto: então era aqui que eu vivia. Ela se perguntara sobre o local onde eu morava. Levantou-se e caminhou, olhando pela janela, dando voltas no quarto, bela garota, Camilla, cabelos escuros cálidos, e eu fiquei de pé e a observei. Mas por que viera? Sentiu minha pergunta, sentou-se na cama e sorriu para mim.

- Arturo - falou. - Por que brigamos o tempo todo?

Eu não sabia. Falei algo sobre temperamentos, mas ela sacudiu a cabeça e cruzou os joelhos, e uma sensação de suas belas coxas sendo alçadas ficou marcada na minha mente, uma sensação densa e sufocante, desejo  quente e luxuriante de tomá-las em minhas mãos. Cada movimento que ela fazia, o suave giro do pescoço, os grandes seios inflando-se debaixo do guarda-pó, as belas mãos sobre a cama, os dedos estendidos. Estas coisas me perturbavam, um peso doce e dolorido me arrastando para um estupor. Então o som de sua voz, contido, sugerindo zombaria, uma voz que falava ao meu sangue e aos meus ossos. Lembrei-me da paz daquelas últimas semanas, parecera tão irreal, fora um hipnotismo que eu mesmo criara, porque isto era estar vivo, estar olhando para os olhos negros de Camilla, confrontando seu desdém com esperança e uma lascívia descarada.

(...)

- Como vão todos os seus outros namorados? - falei. 

Disse aquilo sem pensar. Me arrependi na hora. Amaciei com um sorriso. Os cantos de sua boca reagiram, mas com um esforço.

- Não tenho namorados - disse.

- Claro - falei, com uma leve pincelada de sarcasmo. Claro, eu entendo. Perdoe-me um comentário irrefletido.
Ficou silenciosa por um tempo. Fingi que estava assobiando. Então ela falou:

- Por que é tão mesquinho?

- Mesquinho? - falei. - Minha querida garota, sou tão amigo de homem quanto de besta. Não há uma gota de inimizade no meu mundo. Afinal, você não pode ser mesquinho e um grande escritor. Seus olhos caçoaram de mim.

- Você é um grande escritor?

- É uma coisa que você jamais vai saber.

(...)

- Olá - disse.

- Olá, estúpida - respondi.

- Trabalhando?

- O que acha? - falei.

- Zangado? - disse.

- Não, apenas desgostoso.

- Comigo?

- Naturalmente - eu disse.

(...)

- Com medo? - disse ela.

- De você? - eu ri.

- Está com medo - disse ela.

- Não, não estou.

Abriu os braços e toda ela parecia aberta para mim, mas aquilo só
me fez fechar-me ainda mais, levando comigo a imagem dela naquela
ocasião, como estava viçosa e macia.

- Veja - falei. - Estou ocupado. 

- Está com medo também.

- Do quê?

- De mim.

- Imagine...

Silêncio.

- Há algo errado com você - ela disse.

- O quê?

- Você é veado.

Levantei-me e fiquei de pé ao lado dela.

- É mentira - disse.


* Fragmentos de "Pergunte ao pó" de John Fante. Ed. José Olympio, 2011, 10 edição.
* Uma contribuição de Otávio Borba.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Diálogo da peça: A procura de emprego- Michel Vinaver

(Wallace: Diretor de recursos humanos da CIVA/ Fage: Desempregado/ possível candidato a CIVA)

Wallace: A sua mulher o acompanha?

Fage: Raramente ela esquia um pouquinho não muito

Wallace: Eu não faço muito esqui de pistas mas passeios

Fage: Nós também fazemos verdadeiras façanhas passar a noite nos refúgios dias inteiros na total ah eu o levaria com prazer conheço trilhas que poucos conhecem

Wallace: Descobri no ano passado alguns recantos quem sabe não teremos a oportunidade mas para o senhor é uma verdadeira paixão

Fage: Quando se leva uma vida como a minha

Wallace: Acelerada

Fage: O esqui é uma ruptura com tudo o que é confuso e mesquinho é se libertar da gravidade voar penetrar-se no desconhecido controlamos todos os músculos há uma espécie de harmonia entre a imensidão que nos envolve e o interior do corpo e é a minha filha com ela nos esquis somos unidos formamos uma dupla célebre em Courchevel ah o Fage e a filha dele

Wallace: A que hora costuma acordar?

Fage: Cedo estou de pé entre cinco e seis

Wallace: O que faz entre o momento que se levanta e o momento em que sai para o escritório?

Fage: Desculpe mas não estou entendendo

Wallace: Sou eu que me desculpo se a minha pergunta não foi clara

Fage: Tomo um banho

Wallace: Muito bom quente?

Fage: Morno debaixo do chuveiro recapitulo tudo o que vou ter que fazer durante o dia

Wallace: Fica muito tempo debaixo do chuveiro?

Fage:Estou esquecendo na verdade antes de tomar banho

Wallace: Ah

Fage: Claro faço ginástica começo pela saudação ao sol é um movimento de ioga muito simples que permite desabrochar uma maneira de tomar o impulso do dia

Wallace: Antes de se barbear?

Fage: Não consigo fazer a barba antes de minha xícara de café

Wallace: O senhor pratica ioga?

Fage: Encontrei esse movimento num programa de TV achei curioso experimentei

Wallace: Estávamos no banho

Fage: Desculpe no banho muitas vezes eu descubro a solução de meus problemas as decisões irrompem chego a esquecer o tempo isso até que um escarcéu na porta me traga de volta e é a minha filha Nathalie querendo usar o banheiro antes de ir à escola

Wallace: Se esse Mulawa quiser casar com a sua filha?

Fage: Nathalie tem dezesseis anos e aliás ela não quer saber de casamento nem de aborto.

Wallace: E o senhor?

Fage: Tem filhos o senhor?

Wallace: Se o pai fosse branco

Fage: E talvez pense que eu sou racista?

Wallace: É interessante no seu caso essa passividade assim como se deixou reduzir a pó na empresa do Bergognan

Fage: Como?

Wallace: Eles lhe pediram para baixar as calças e depois para andar de quatro com  a bunda empinada e foi o que o senhor fez

Fage: Como?

Wallace: Sou eu quem lhe pergunto não foi por covardia congênita até pode se dizer que o senhor tem uma personalidade corajosa foi a necessidade de se sentir protegido o senhor tem alguma coisa infantil

Fage: Eu lhe asseguro que fiquei aliviado quando acabou

Wallace: Exatamente deixou que eles fizessem o que o senhor sabia que devia fazer mas não ousava fazer  o senhor se aliviou como bem disse

Fage: Esses rapazes que recrutei formei com eles eu tinha uma responsabilidade

Wallace: E o senhor tenta encontrar na sua noção de dever um álibi para a sua covardia o que aliás duplica a covardia

Fage: Senhor eu tenho um outro encontro

Wallace: Sente-se

Fage: Engula suas palavras

Wallace: Vamos quieto

Fage: Você também cala a sua boca

Wallace: Bem estou anotando suas diferentes reações capacidade de aguentar golpes controle sobre si arroubo de dignidade



domingo, 12 de fevereiro de 2012

Seabiscuit - Final Race

Nesse vídeo, vale reparar a posição em que os cavaleiros ficam quando montados no cavalo. Eles não encostam o bumbum no assento!!! E o movimento constante dos braços tbm é bem legal!

sábado, 11 de fevereiro de 2012

além de sangue, mijo.

tô viajando aqui nas várias formas de dominação. esta imagem de um corpo morto de guerra estirado no chão e soldados americanos mijando me chamou muita atenção.