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terça-feira, 8 de maio de 2012

Processo colaborativo no Teatro

Vontade de dividir o email da Ro com vocês!


oi, Caio

Adorei você me ligar pra dividir a experiência.

Fiquei pensando sobre o que você disse no ensaio, algo como "a gente ficou careta". Então queria dizer que a coisa do texto não tem nada a ver com caretice ou com contemporaneidade. É que a gente não muda tudo de repente. No novo que a gente faz, sempre tem uma persistência do que já foi. Por isso é super normal que, ao mesmo tempo em que você investe em um campo novo, lida com os demais da mesma forma que fazia antes. É claro. Talvez agora esteja chegando o momento de conseguir vir e entender o que é isso que está sendo criado, que criatura é essa. Eu só posso perceber isso porque não estou lá todo o dia, tenho distanciamento, aí vejo o fragmento da obra como peça autonônoma, sem tanta memória de processo, sem apego. Talvez dê para, daqui a pouco, você conseguir ver o que a criatura nova está pedindo como verbo, sonoridade e sentido. É que você ainda está se mergulhado nos atores. Aderbal dizia isso sobre o trabalho do diretor - que há um tempo de se colar aos atores para criar e depois um tempo de se sentar na platéia como um espectador ideal, apreciar, entender e mexer. E aí talvez você consiga ver que os textos que fora dali parecem bons, quando ditos ali dentro se tornam outra coisa, porque são parte da criação e não tem mais autonomia. Mas, como dizem os americanos, tome seu tempo. É mais importante perceber a questão, cavoucar o problema, do que solucionar.

beijo!

domingo, 29 de abril de 2012

a dor do não dito | LETÍCIA G.R.D.


Redescobrir os caminhos do texto é encontrar-se com o lugar do indizível. Sabe-se que esse inominável é de alta periculosidade. Caminha de olhos fechados no meio da avenida. Nauseia-se então na palavra seguinte. A dor do inatingível lhe alcança todos os dias. Como explicar para um lugar cinza que as danças se concluem muito vagarosamente em sua mente? Mas de repente estalam! Tornam-se nítidas e intensas. Como se sempre estivessem ali só esperando para serem nomeadas. Não é possível pausar o tempo, desfazer angústias e desmembrar as dores. Tudo persiste na intensidade caótica do pensamento. Como é mesmo o nome dessa palavra? Expressar. Cada vez é mais difícil expressar. Deslocar o pensamento para o papel. Revirar a garganta na procura do substantivo. Chacoalhar o cérebro na busca de uma definição. É! Desse modo. Assim. E assim continua o texto. Um texto que não vai atingir seu lugar. O topo do morro é inacessível à linguagem. Só o pensamento e a idéia podem chegar até lá. Quem sabe o corpo em movimento transmita melhor a mensagem. O ato de escrever cristaliza o movimento do pensamento. Impede que os devaneios sejam compreendidos. Amarra a alma em um nó de gravata. Desfaz-se no horizonte. No outro dia retorna. Aperta. Afrouxa. Desespera os sentidos. Cala a alma. No outro instante grita. No entanto, nada expressa. Gira em círculos desatinados em busca da palavra. AHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!



Porque nada é absoluto. Milhares de folhas verdes escuras e claras se chocam lá fora com o vento incessante e gelado que transformou essa cidade em cinza em plena primavera quase verão. E hoje eu me sinto no outono quase inverno. Só que ao contrário. Minha pele em riste parece denunciar uma espécie de falta transmutada em amargura e dor que acaba por me levar a um choque interno intenso e íntimo. Dezenas de correntes me elevam a uma altura que nunca estive e orquestradas me soltam em direção ao chão que não é só meu destino mas sim meu túmulo mais supulcral e definitivo. Quando eu disse que te amava pela primeira vez eu experimentava todo o prazer único, exclusivo, intenso e inesquecível de se entregar pra alguém que se entrega pra você, e nossos corpos foram um só porque eu nunca havia sentido a vontade e o desejo e o amor carinhoso e permeável e intenso e bonito e valente e corajoso que eu senti por você. Eu só queria que esse outono quase inverno fosse aquele nosso verão do avesso perfeito e desenhado que havíamos nos prometido. Eu te desejo toda a liberdade do mundo porque teus olhos inocentes e reticentes e molhados e suaves são o retrato de um homem brilhante, único, singular e idealizado de forma potencializada pela dor de amor que eu sinto agora por você. Que essas rajadas geladas e sombrias lá fora consigam petrificar e pacificar tudo de mais especial que vivemos juntos dentro de mim.


ZG 


http://osbonsnuncaserendem.blogspot.com.br/

quinta-feira, 5 de abril de 2012

DO DIA EM QUE VIREI UM BICHO

Samira Ávila, do Cia Espanca!:


Lembro do ensaio em que a Grace me deu quatro páginas de xerox do capítulo “A viagem” do livro “Perto de um coração selvagem”, da Clarice. Minha Mulher já sabia cair, mas tinha que aprender a se levantar. Eu tinha dificuldades de encontrar forças pra ela. Achava que ela não tinha mais motivos para seguir em frente, para repetir tudo. Aí eu li o texto da Clarice. Fiquei perturbada com a mulher do coração selvagem. Sempre gostei de cavalos. Queria que o grupo se chamasse “Grupo de Cavalos” e já havia decidido há muito tempo que quando eu tiver um cachorro ele vai se chamar “cavalo”. Já tive um cavalo também quando era pequena, mas acho que era mentira do meu pai. E, sim, Clarice: eu iria me arranjar sendo um bicho. Reli o texto.

(…)eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheia de vontades de humanidade, não o passado correndo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei, só então viverei maior que na infância, serei brutal e mal feita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”.

Escrevi muito urgentemente alguma coisa atrás de uma das folhas do xerox e fizemos uma improvisação da Cerimônia das Palmas. Era aquilo. A Mulher nunca ficou tão fraca, era extremamente cansativo tentar se salvar. E se levantar não significava ser forte.

“O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição”.

terça-feira, 27 de março de 2012

Grilhões e serpentinas

Esperanças à toa se partem
Chaves perdidas, sem serem usadas
Vultos passam, quem deixa as marcas?

Estendo a mão para me agarrar em algo
Cartas e búzios indicam o caminho
Salto no abismo,
Uma corda no pé
Outra ao pescoço

Em queda
Desato os nós dos dedos
E com um passar de mão
As paredes desabam
Uma a uma

E vou-me ao fundo
E vou-me ao longe
E vou-me além.

(Omar Salomão)

sábado, 24 de março de 2012

Para Lila

Coisas que se quebram 



mecanismos de relógio:
manejo a pinça
& cuidado,
patas de inseto: cílios
com pegadas;
pequeno, tudo parte
& corre risco, coisas
que se quebram.
& como tão
quebrados & partidos
não contamos
os resquícios, apegar-se
a todo vício de 
viver:
o que sei o
que amo, frágeis
elos da cadeia, mí-
nimos, confortos
de uma ideia & tão
no entanto
humanas
coisas que se
quebram,
que não se sabem
ou se respeitam
pactos
como esses, micros-
cópicos, não
germina amor nem
nada bom
deriva disso, tão minús-
culo impreciso de-
licado
ajuste.


Dirceu Villa

domingo, 18 de março de 2012

sexo animal.

“Aliás Josefa estava ligada ao pai de Eugênio por um sacramento; tinham se casado na igreja algumas semanas antes que o marido a abandonasse. Ele se comportava como um animal, contara-me a mulher; atirava-se em cima dela, derrubava-a, mordia, furava-a, gozando antes dela ter tempo sequer de acabar de tirar as calças. O marido tinha um sexo de cavalo, um cavalo cambaio, fogoso, ele a machucava, relinchava alguns segundos em cima dela e mergulhava num sono de defunto enquanto ela chorava lágrimas que nada tinham a ver com lágrimas de amor. Às vezes, ao voltar do trabalho, ele a surpreendia por trás quando ela estava mexendo as panelas, botando sal ou pimenta, cozinhando o arroz. Ele a agarrava em pé, arranhava-lhe a barriga, trespassava-a. Muitas vezes ela, aos gritos, deixara cair o saleiro dentro da panela, e freqüentemente se queimara. Um dia o homem a sodomizara através da saia, uma saia de raiom azul-claro, na qual o membro do cavalo, forçando a trama do tecido, imprimira uma tal concavidade que nenhuma repassagem a ferro conseguiu tirar. Extenuado, o animal caíra no chão da cozinha. Josefa fugira de casa, a saia inundada, as coxas escorrendo filetes de sangue. Quando voltou, seu marido tinha desaparecido. Mais tarde ele mandou dizer, por uma puta, que sua mulher tinha o grelo muito pequeno, que o casamento o tinha decepcionado, que se sentia roubado. Josefa estava grávida de Eugênio.”

O Jardim do Nada - Conrad Detrez

sábado, 17 de março de 2012

Um monólogo

Infelizmente eu não sou tua Ofélia e você, tão pouco, é meu Hamlet. Essa história não merece o frio da Dinamarca. Merece o calor. Um clima tropical, agradável, cheio de flores e outras bobagens coloridas. Uma flor pode brotar de uma pedra, mas não de cubo de gelo. Eu, pelo menos, nunca vi. O importante é que no calor o cadáver apodrece mais rápido. Num instante, o cheiro fétido exala o mais puro fogo fátuo e então urge-se enterrar o defunto. Pô-lo debaixo da terra. Selá-lo de vez no ataúde, antes que a situação se torne incômoda e que a pessoa que um dia amamos e de quem sentiremos eternas saudades se torne um pedaço de esterco, uma carne pútrida, saindo ainda por cima, da obscenidade do corpo morto, fluídos pustulentos e uma orgia de moscas e formigas. É por isso, amor, espero que entenda, que eu quero um dia ensolarado, o sol lindo e pessoas indo à praia.... No frio isso não seria possível. Sabia que Shakespeare vivesse em algum país tropical ele nunca teria feito Romeu e Julieta? Sabia? Por que se Julieta tivesse tomado o veneno, no dia seguinte, seria enterrada viva, e a sua morte seria em vão, movida por um desespero idiota e precipitado, o golpe teatral seria pobre, não seria nem mesmo uma tragédia, seria mais uma fatalidade, tal qual aqueles acidentes de trânsitos, ou aqueles suicídios sem graça, coisa de jornal de qualquer maneira. O frio é bonito. Favorece o isolamento. Pensei em ir à Europa um dia desses. Você se lembra? Você disse que não: problemas de dinheiro. Talvez fosse o problema da vida a dois. Suportar-se demais em troca de um bem estar. Em troca de uma harmonia que nada mais é do que a resignação. A convivência é foda, é uma merda. Quem convive não vive. É aceitar como bem amado alguém que na verdade não passa de um inquilino na sua vida. Você nunca parou para pensar nisso? Deixa para lá. O amor não é belo, meu querido. É o que há de mais animalesco na alma. Amor é uma coisa que chega bem perto do canibalismo. E você sempre se despedia dizendo que me ama. Lembra? Se eu fosse uma pedra, você também falaria a mesma coisa, contanto que estivesse casado com ela. Tanto faz. Aquilo era práxis. Burocracia. Sabe por quê? Não? Por que todo mundo que fala ‘eu te amo’ quer ouvir ‘um eu também’. Isso é burocracia, meu bem, é o puro método. Aritmética! Essa é a palavra! Se tu és o amor da minha vida, eu também sou o amor da tua vida, o que quer dizer que se eu te amar você também vai me amar, justamente por que eu te amo, em tese. Tirando a prova dos nove sempre vai dar zero. Não tem saída. Fala-se exclusivamente o que se quer ouvir. Isso é harmonia, isso é zero. É transar sem se dar a dignidade de receber um tapa sequer, sem ao menos um puxão de cabelo ou uma sacanagem dita laicamente ao pé do ouvido. Não. Eu me nego. É necessário violência. É necessário se aventurar no próprio corpo, ou condenar-se o conviver um domingo de cada vez. Doses homeopáticas de antropofagia. Era disso que eu precisava e você nunca percebeu! Mas ainda não é tarde. Logo hoje: um dia lindo! Você tão carinhoso ao meu lado. Você sempre teve cabelos sedosos. Hoje você não foi trabalhar. Que bom. Fiz a comida que você gosta. Como sempre. A pena é que você só passe o final de semana aqui. Dois dias, acho que três, estourando. Mas não tem problema. Sempre te recebo de braços e pernas abertas. Mesmo se acidentalmente você me deixar com um olho roxo ou se, alterado, você me chame de puta. Tudo sara. Tudo se esquece. Em troca de quê? Da convivência. Conviver é condenar-se. Mas hoje, meu amor, tem cerveja na geladeira. Se exagerares pode me espancar depois. Hoje eu deixo. O roxo na carne, a ardência da mão contida na pele e os palavrões ressoando na cabeça, no chuveiro, tudo vai embora. Toda mulher rogada se confessa com o chuveiro, e lá, deslizando as costas nos azulejos até se sentar no chão, num retorno involuntário a posição fetal, a água acaricia os hematomas e no ralo o corpo se confronta com a incoerência de querer torna-se líquido e desaparecer em qualquer buraco. O banheiro sempre foi a igreja desta casa. Tu sabes muito bem. Mas você não é o culpado. Não se preocupe. Talvez a culpa seja da sociedade. Não sei. Não quero filosofar. Mas não pense que eu sou uma dessas Ofélias. Infelizmente, eu não estou louca. Na verdade nunca estive tão sã. Calculei tudo, como quem faz uma complicada decoração de natal, com enfeites e luzes, passa dois dias imaginando como vai instalar piscas-piscas em toda a casa, põe o plano em prática, liga tudo na tomada e no regozijo de seu espetáculo particular se deleita, como se aquilo, em algum momento, não fosse premeditado, como se aquilo tivesse um quê de magia que só com a energia circulando nos pequenos filamentos de tungstênio fosse possível consumar de vez a obra; como se ao finalizar um quadro o pintor regozijado assinasse seu nome no canto da tela e se não fosse essa pequena assinatura o quadro não teria sentido, seria apenas um nômade; foi desse jeito, com esta apoteose, que vi, aos poucos, a invisível pirotecnia do veneno se diluindo na água, tuas pupilas dilatadas como se tua alma estivesse caindo dentro de um poço, tua baba escorrendo pela boca, a tua tentativa de respirar sem ar no peito, teu último olhar, ternamente desesperado, me interrogando o porquê... ‘você sabe o porquê’, respondia eu, tentando ainda te socorrer, perguntando com lágrimas histéricas ‘o que foi?’, ‘o que foi? Você está bem?’. Teu corpo pesado se repousou nos meus braços, foi se entregando à gravidade, tive que segurar tua nuca, senão ela cedia para trás, aos poucos fui me abaixando, até ficar de joelhos e te ter no meu colo, e lá, com o perfil do rosto comprimindo meus seios sem leite, deste teu derradeiro suspiro tentando não sei se me abraçar ou se me arranhar, mas a morte, enfim trouxe o alento, e depois, aliviado, tu parecias um menino dormindo, parecia que tinhas saído do meu útero... Shhhhhh! Você não ouviu, mas eu também te amo.



terça-feira, 13 de março de 2012

Creme de alface

Enfim, enumerou na esquina, Raul se enforcara no banheiro, cinco anos exatos amanhã, e este maldito velho com passinho de tartaruga bem na minha frente, eu tenho pressa, quero gritar que tenho muita pressa, Lucinda quebrou as duas pernas atropelada por um corcel azul três dias depois da Martinha confessar que estava grávida de três meses, e não quer casar, a putinha, desculpe, mas o senhor não quer deixar eu passar? tenho pressa, meu senhor, o telegrama, a putinha, crispou as mãos de unhas vermelhas pintadas na alça da bolsa, pivetes imundos, tinham que matar todos, venha urgente, ir como com aquele desconto de trinta por cento no salário e todos os crediários, papai muito mal pt, apoiou-se, não, não se apoiou, não havia onde se apoiar, apenas pensou no apoio de alguma coisa sólida que não estava ali, havia só os corpos, centenas deles indo e vindo pela avenida, ela roçando contra as carnes suadas, sujas, as gosmas nas lentes dos óculos, como se não bastasse a tia Luiza agora que nem criancinha, mijando nas calças, brincando de boneca, dá licença, minha senhora, tenho seis crediários para pagar ainda hoje sem falta, aqueles jornais cheios de horrores, aqueles negrinhos gritando loterias, porcarias, aquele barulho das britadeiras furando o concreto, naquele dia, a fumaça negra dos ônibus e eu de blusa branca, a idiota, introduzindo devagar a chave na porta do, apartamento de Arthur, buquê de crisântemos na outra mão, uma hora tão inesperada, e tão inesperados os crisântemos, a senhora não vai andar mesmo? o sinal já abriu faz horas, só uma cretina seria capaz de trazer duas crianças ao centro da cidade a esta hora, ele jamais poderia imaginar, o ruído leve da chave abrindo a porta, animal, por que não olha onde pisa? atravessar a sala na ponta dos pés, abrir a porta do quarto e de repente a bunda nua de Arthur subindo e descendo sobre o par de coxas escancaradas da empregadinha, meu deus, mulatinha ordinária, se pelo menos fosse uma profissional, eu podia entender, eu não podia entender, vomitou no elevador sobre os crisântemos amarelos, não, não sei onde é a Casa Oriente, pergunte para o guarda, agora ele vai morrer, será castigo? câncer no baço, nunca mais seu cheiro de cavalo limpo, nunca mais o peso e os pêlos de seu peito sobre meus seios quase murchos, a putinha, a mulatinha vadia, por isso me olhava com aquele ar superior, ainda por cima esse calor absurdo em pleno inverno, o eixo da Terra, dizem, a estufa, o ozônio, tudo um horror, em dez anos estaremos todos surdos, cegos, envenenados, as lãs do começo do dia vertendo suores entre as pernas, como é que uma gorda dessas pode sair à rua ao lado de outra gorda ainda mais larga? fazem de tudo para atravancar o movimento alheio, se pelo menos tivessem avisado a gente, você não vai me vencer, ouviu bem sua vida de merda? eu vou ganhar de você no braço na raça e quem se meter no meu caminho eu mato, sem falar no Marquinhos o tempo todo enfiando aquelas coisas nas veias, roubando coisas pra comprar a droga, e sou eu sozinha quem carrega todo esse peso nas costas, isso ninguém percebe, ninguém valoriza, não, eu não nasci para viver neste tempo, sensível demais, no colégio já diziam, certo talento pra dança, eu tinha, e a Lia Augusta agora querendo ser modelo, fortunas naquelas fotos, não tenho nada com isso mas falei assim pra lolanda, bem na cara dela: é tudo puta, o senhor por favor poderia fazer o obséquio de tirar o cotovelo da minha barriga? porque precisa ser super-humana, vocês estão me entendendo, seus porcos, boiada, manada, desviou com nojo do velho, a pústula exposta, vai pedir dinheiro na Secretaria da Fazenda, já cansei de dizer que mendigo é problema social, não pessoal, a cadela da Rosemari bebendo cada vez mais, meio litro de uísque até o meio-dia, depressão, ela diz, no meu tempo isso tinha outro nome, pouca-vergonha era como se chamava, este fio fino de arame atravessado na minha testa, de têmpora a têmpora, vibrando sem parar, é preciso sim ser biônica, atômica, supersônica, eletrônica, vocês pensam que eu sou de ferro?

Quando ia começar a rir alto parada na esquina, viu a bilheteria do cinema, a franja de Jane Fonda, imaginou a temperatura amena, o escuro macio na medida exata entre o seco e o úmido e pelo menos, decidiu olhando o relógio, ainda dá tempo, os crediários podem esperar, pelo menos duas horas santas limpas boas de uma outra vida que não a minha, a tua, a dela, a nossa, uma vida em que tudo termina bem.
Foi então que a menina segurou seu braço pedindo um troquinho pelo amor de deus pro meu irmãozinho que tá no hospital desenganado, pra minha mãezinha que tá na cama entrevada, tia. Ela disse não tenho, crispando as unhas vermelhas na alça da bolsa enquanto puxava a entrada do outro lado do vidro da bilheteria. A menina insistia só um troquinho pro meu irmãozinho e pra minha mãezinha, moça bonita, tão perfumada. Ela repetiu não tenho e de novo não tenho, mas a menina olhava o troco pedindo cinqüenta centavinhos, uma tia tão bonita, eu tô com tanta fome e o meu irmãozinho desenganado no hospital e a minha mãezinha entrevada em casa, eu que cuido. Ela gritou não tenho porra, e foi tentando andar em direção à porta do cinema, não me enche o saco, caralho, em volta os outros olhavam, e não me chama de tia, mas a menina não largava seu braço. Assim: ela segurando com força a alça da bolsa fechada enquanto tentava andar, e sem querer arrastando a menina que não parava de pedir. Ela sacudiu com força o braço como quem quer se livrar de um bicho, uma coisa suja grudada, enleada, e foi então que a menina cravou fundo as unhas no seu braço e gritou bem alto, todo mundo ouvindo apesar do barulho dos carros, dos ônibus, dos camelôs, das britadeiras, a menina gritou: sua puta sua vaca sua rica fudida lazarenta vai morrer toda podre. Tão exato, subitamente. Inesperado, perfeito. Mais contração que gesto. Mais reflexo que movimento. Como um passo de dança ensaiado, repetido, estudado. E executado agora, em plenitude. Ela ergueu a perna direita e, com o joelho, pelo estômago, jogou a menina contra a parede. A menina escorregou gritando cadela filha da puta rica nojenta vai morrer toda podre. Mas tantos carros passando e tanto barulho mas tanto tanto, justificaria depois, à noite, na mesa do jantar, bem natural, servindo a sopa ainda não decidira se de ervilhas ou aspargos, sabem, hoje me aconteceu uma coisa que, tudo vibrando tanto, tudo se movendo tanto, tudo girando tanto, esse arame atravessado na minha testa, uma coroa de espinhos. Certeira, com a ponta fina da bota acertou várias vezes as pernas da menina caída. Alonga e contrai e bate e volta e alonga e contrai e bate e volta: exatamente como numa dança, certo talento, todos diziam.
Mas não esperou pelo sangue. Afastou as pessoas em volta com os cotovelos, só o tempo de comprar um pacote de pipocas, para afundar naquele escuro exato, nem úmido nem seco, em tempo ainda de ver no espelho da sala-de-espera uma cara de mulher quase moça, cabelos empastados de suor, roxas olheiras fundas e mãos de unhas vermelhas pintadas crispadas com força na alça da bolsa.
Quase uma assassina, não pensou, meu deus, quase uma criminosa, espalhando-se sem horror na poltrona no momento em que as luzes começavam a diminuir. Apertou a bolsa no colo, puxou com as unhas, para baixo, a gola alta arranhando o pescoço, cheiro de bicho, sentiu, cheiro meu de bicho eu brotando do meio dos meus seios quase murchos, seis crediários e esse dinheiro por um filme que nem sei direito, Arthur deve estar morrendo mais um pouco agora, os cabelos finos e frágeis da quimioterapia. Ah, se enforcar feito Raul, se deixar atropelar igual Lucinda, regredir como tia Luiza, emprenhar que nem Martinha, trair como Arthur, se drogar igual Marquinhos, beber feito Rosemari, virar puta que nem Lia Augusta: biônica atômica supersônica eletrônica — catatônica o dia inteiro no canto do pátio, enrolando no dedo um fio de cabelo ensebado, os outros mijando e cagando em cima dela, a pia cheia de louça de três meses, lesmas, musgos, visgos, deixar apodrecer a vida como a vida deixou apodrecer o coração, não, não nasci para este mundo, a bunda num subindo e descendo sobre um par de coxas alheias, ainda por cima mulatas, nunca mais e eu de blusa branca e com crisântemos amarelos, puta fudida, cadela escrota, ai que vou morrer toda podre por dentro, por fora. O bico da bota ardia querendo mais, cinco anos no fundo de uma cama, e de repente o contato do joelho quente de uma perna estendendo-se da poltrona ao lado, tentou prestar atenção nas imagens, a silhueta das cabeças, meu deus, que boca tem a Jane Fonda, pensou em mudar de lugar, mas tão cansada, um oceano de paz, e antes de decidir arriscou um olho para o nariz poderoso do macho ao lado desenhado no escuro a seu lado, e suspirou mole, por que não, ninguém vai saber, cadela gorda no cio afundada cada vez mais na poltrona, a boca cheia de pipocas. Pouco antes de abrir as pemas deixando os dedos dele subirem pelas coxas, bem devagar, para não assustá-lo, ainda esfregou as palmas secas das mãos uma contra a outra, tão ásperas, o espelho da sala de espera, uma lixa, que pele meu deus tem a Jane Fonda, o lixo das mas e o roxo das olheiras tão fundas, mas tão fundas pensou acariciando o rosto enquanto um dedo dele entrava mais fundo, tão fundas que resolveu, eu mereço, danem-se os crediários, custe o que custar saindo daqui vou comprar imediatamente um bom creme de alface.

Caio Fernando Abreu

Eu parei para pensar nisso aqui # 2

Sobre o início. Levar todos para o chão, no momento, não funciona. Me parece cedo demais, sujo demais e bruto demais. Uma pena. Uma imagem com um potencial enorme...Bom, podemos encontrar depois um espaço para ela. Um espaço que a receba melhor....de forma mais harmônica. OI? Quem falou em harmonia? Risos e esqueçam essa palavrinha. 

No movimento de abandonar esta ideia de tentativa, o que mais me dói é a perda do recurso da repetição. Ou seja, como excluímos essa imagem (movimento) e continuamos a expor ao espectador um novo início, a retomada de um ciclo ou coisa parecida? No caminho para casa, conversando com a Su, me veio uma ideia. A ideia de deslocarmos a utilização do recurso da repetição para depois do prólogo. 

Informo: entendo como prólogo neste texto a dancinha do Rafa e o lamento da Aline. Só até aí.

Volto. Se tiramos a repetição do prólogo e a transferimos para o que vem depois dele, ganhamos uma nova saída para o que venho propondo, ao mesmo tempo, que não abandonamos o recurso. Explico. Todos entram , se posicionam e o Rafa tenta nos convencer, enquanto espectadores, do texto que diz. Tenta nos convencer de alguma realidade possível, da existência de personagens e pequenos dramas que podem, ou não, ganhar espaço e visão ao longo da narrativa. Vamos ouvindo e tentando entender, juntamos sexo com faca, beijo com salame, aqui com vazio, medo com letra, vamos indo...tentando. Fim do texto do Rafa. Troca 1. Se depois da troca 1, um outro ator ocupa o lugar do Rafa com um novo texto e, mais uma vez, tentar nos convencer de uma realidade ficcional, ganhamos no recurso e também no desenvolvimento da narrativa. Este outro ator pode trazer um texto que desminta, sublinhe ou reconfigure as imagens sugeridas pelas palavras ditas pelo Rafa. Em nova formação espacial, somos convidados a navegar neste grande emaranhado de histórias possíveis. Pequenas vitrines. Neste momento, a visão que temos dos micro-movimentos já pode ser outra...precisamos entender de que forma. De que forma? Na velocidade, na duração, na qualidade, na repetição ou no acréscimo de outra micro-informação? Essa nova forma, atrelada ao novo texto, intensifica o trabalho dos espectadores que precisam trabalhar junto com a obra. Juntar as peças. Até este dado momento, a encenação é linear, clara. Mas o seu entendimento pode não ser. Talvez, mais do que como imagem imposta ou recurso de exposição dramática, o fragmento surja como necessidade interpretativa da parte de quem olha, assiste. Se somos um, e neste um somos capazes de ser cento e um, não estamos desconstruindo, ainda, nada. Estamos, através de uma lente de aumento, redimensionando partes, detalhes escolhas. Não sei...mas me parece que devemos tentar.

Essa tentativa pode gerar um futuro interessante para este jogo inicial. Pensando que a cada troca, um novo narrador surge, quando o jogo se esgota? Quando -  do texto -  resta apenas uma palavra? Quando as informações se juntam e tcham começa daqui, outro dali e seguimos em frente? Vamos arriscar?

Observações:

- estou em busca de um novo texto que se assemelhe com o do Pavlovsky. Nem muito aberto, nem muito fechado. Com a aparição de pessoas, pequenos causos e, quem sabe até, confissões. Ou isso já sou eu também tentando compreender as palavras deste gênio argentino. Quem puder ajudar...por favor.

- me ocorreu que da vertical podemos ir ao solo no comando do dominador e do dominado. Solução super simples, mas se bem inserida, com um potencial dramático super interessante. Talvez, seja este um caminho.

- caminho: material zero. um lamento. tudo dói. tudo chora. são pessoas. seres humanos. são falências, amores perdidos, desencontros para novos encontros. são cidades, pinos, alegorias. são repetições de um mesmo tema, um mesmo dilema. são porcos, sujos, que se atropelam, se julgam e, sem saber, se desgastam. disputam. dominam o outro. sobem em cima. quem manda aqui? discutem, interrogam, brigam. são animais. humanimais. coice, touro, coice, banda, coice, árvore. depois se lavam. não porque ainda se amam, mas porque não podem ir embora com o corpo carregado, culpado. é um fato. é real.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Sugestão de texto para o Rafa #2

"A única coisa que a admiro é a intensidade do desespero o momento mais sublime... (...) penso não se dão conta da inutilidade dos gestos penso esse pobre homem parado com seu joelho direito dobrado e calcanhar na parede está assobiando vejo-o tocar seus genitais com dissimulação e penso o que irá fazer agora? caminha uns metros exatamente mais três abraça outro homem sem ter consciência do desespero do momento... (...) Conheço uma amiga que tem uma amiga que não pode ler porque tem medo do vazio entre as letras. Medo de cair... Creio que sim - cair pelo vazio das letras. Tem medo. Terminou empregando-se em uma delicatessen - cortava salame com uma faca grossa. Ficava aliviada ao sentir a densidade do salame cortado por uma faca grossa - Um dia o dono da delicatessen lhe disse que ia ser mais fácil para ela cortar o salame em rodelas na máquina. Mas então o salame cortado na máquina caía rápido demais - sentia que ela caía no vazio toda vez que a máquina cortava as rodelas de salame. (...) Estamos todos tão grudados e imprensados que outro dia ao abrir um refrigerante dei uma cotovelada no senhor que estava ao lado foi ultra incômodo porque deixei seu olho preto. Conto os dias e voltamos isto é infernal e todos contentes! Um cara me fez uma pergunta que conservo em minha memória por ser a única coisa falada entre nós me perguntou se aqui tinha chovido de manhã. Nunca soube o que queria dizer com aqui. Se ele se referia ao meu pequeno espaço de minhas intimidades, ou talvez se referia a algum território mais amplo que já não posso reconhecer - mas que talvez ele imaginasse perto de mim. Não creio - não sei - que ele estivesse se referindo a cidades ou localidades que há tempo não fazem parte de meu mundo - ou de meu interesse. Eu só posso falar de mim. (...) Nós nos demos um beijo intenso - com a intensidade de outras épocas milenárias - minha língua recobrava sensibilidades perdidas - às vezes as línguas envelhecem também - e vão perdendo a sensibilidade - ficam senis - não perdem nem poder nem força mas sensibilidade beija-se o que for. (...) Ouviu alguém dizer que isto não podia continuar assim -  tinha que parar a coisa - impor ordem - um pouco de ordem. Você me disse algo que não entendi mas que lembro... "


A Morte de Marguerite Duras, de Eduardo Pavlovsky

ps: boa parte desta dramaturgia do Pavlovsky não trabalha com a pontuação ''correta''. Mantive os trechos selecionados como no original.

Sugestão de texto para o Rafa

Guia Semanal de Ideias


Segunda

Não achei a Távora mas vi o King Kong na
pracinha. Análise. Leu-se e comentou-se que o
regime não vai cair. Clímax alencariano das Duas
Vidas.

Terça
Parque Lage com Patinho. Yoga. Sopa chez avó.
Di do Glauber. Traduzi 5 p de masturbação até
encher o saco.

Quarta
Fingi que não era aniversário. Almoço em
família. Saidinhas à tarde com e sem Tutu. Não
me aclamaram no colégio como se esperava. Saí
deixando pistas com a psicóloga.

Quinta
Passei para os alunos redação com narrador
sarcástico. Último capítulo de Duas Vidas.
Encontro PQ na portaria e vamos ao chinês.
Conversa de cerca-lourenço, para inglês não ver.

Sexta
Bebericamos depois do filme polonês. Quarto
recendendo a chulé e sutiã. Guardados. Voltei no
aperto, mas não tão mole.

Sábado
Cartas de Paris. Disfarcei-me de nariz para
enganar PQ. Casas da Banha. Cheguei cedo,
parei em frente à banca das panelas.

Domingo
Lauto café à beira-mar. Mímicas no ônibus.
Emoção exagerada, demais, imotivada. Dildo
ligou, pobre. Darei bola? Anoto no diário
versinhos de Álvares de Azevedo. Eu morro, eu
morro, leviana sem dó, por que mentias. Meu
desejo? Era ser… Boiar (como um cadáver) na
existência! Mas como sou chorão, deixai que
gema. Penso em presentinhos, novos
desmentidos, novos ricos beijos, sonatilhas.
Continuo melada por dentro.


Ana Cristina César

quarta-feira, 7 de março de 2012

Para uma avenca partindo

- Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas  coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? olha, falta muito pouco tempo e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme de todas essas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente , entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando o meu raciocínio? falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei por que todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor, pensei sim, não, pensar propriamente não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além de nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos dos cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, de não sentir medo desse mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que eu estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa da garganta que falo, é de uma outra coisa, de dentro, entende? por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o seu relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim dum jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez, samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que eu estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai ser mais possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é a minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor, não é? pois isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando numa porção de coisas que queria te dizer,  pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis que precisam ser ditas, não faça essa cara de espanto, elas são realmente terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, se você teria, não sei, disponibilidade suficiente para ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? não sei, não me interrompa agora que eu estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é, eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir  que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente em nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas essas coisas, é por isso que eu estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavas, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que eu estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos pra quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................ sim, sei, eu vou escrever, não, eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as bolsas, fica tranquila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê. 

Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 5 de março de 2012

Para Gunnar 2

Artigo científico.
Este me parece mais centrado na questão.
Parece ser melhor.

http://professor.ucg.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/7541/material/ARTIGO%20DISFUN%C3%87%C3%83O%20DE%20M%C3%9ALTIPLOS%20%C3%93RG%C3%83OS.pdf

Para Gunnar

Artigo científico.

http://files.bvs.br/upload/S/1679-1010/2011/v9n2/a1823.pdf

Para Bel.


Bel, compadecemos dessa dor. Acho de uma beleza única este material. Vamos pensar sobre ele? Partiturar? Experimentar partes em jogo? Desenvolver? Que bela citação, que bela consideração sobre aquilo que se move sem rédea e em direção ao nada. Vamos a luta!

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas",Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59

Para Nat e Cacá.

sábado, 3 de março de 2012

O ruivo

Quando eles abriram a porta houve um pequeno empurra empurra. Ele foi jogado sobre mim, ele se desculpou, nós começamos a conversar. Quase uma hora e meia esperando naquela espécie de depósito cheirando a camembert, até que um ruivo com cara de nada veio me atender. Ele sumia no meio de uma frase pra reaparecer com um novo monte de papel dizendo:"Pode continuar." Ele me interrompia o tempo todo dizendo:"Tá bom." Ele corrigia relatórios enquanto eu me esforçava para que prestasse atenção em mim. Uma mulher entrou com um pano na mão, pensei que fosse a faxineira, ela não se apresentou é claro. Ela me perguntou se eu havia sido despedido diversas vezes de empregos anteriores. Eu lhe perguntei se ela tinha tido o cuidado de consultar a minha ficha. Ela me respondeu que não se devia acreditar em tudo que as pessoas escrevem. Ela me olhou sorrindo e acrescentou:"Nem no que dizem." O ruivo queria saber quais eram os meus conhecimentos em matéria de embalagem. Recomeçar do zero. Quando éramos répteis abandonamos os pântanos.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Se puderem, perguntem ao pó:


Uma contribuição para Cacá e Gunnar. Ao meu ver, bons caminhos para o desdobramento da relação já iniciada no diálogo de "Uma linda mulher". Possíveis brechas, possíveis encontros e desencontros. Gosto, especialmente, dos diálogos curtos e do fluxo de pensamento da personagem masculina. Gosto, também e ainda mais, da forma como a personagem se coloca em relação ao corpo da Camilla e a maneira sexual e instigante de como a descreve.


AQUI:

Uma noite, atendi a uma batida na porta e lá estava ela.

- Camilla!

Entrou e sentou-se na cama, com algo debaixo do braço, um maço de papéis. Olhou para o meu quarto: então era aqui que eu vivia. Ela se perguntara sobre o local onde eu morava. Levantou-se e caminhou, olhando pela janela, dando voltas no quarto, bela garota, Camilla, cabelos escuros cálidos, e eu fiquei de pé e a observei. Mas por que viera? Sentiu minha pergunta, sentou-se na cama e sorriu para mim.

- Arturo - falou. - Por que brigamos o tempo todo?

Eu não sabia. Falei algo sobre temperamentos, mas ela sacudiu a cabeça e cruzou os joelhos, e uma sensação de suas belas coxas sendo alçadas ficou marcada na minha mente, uma sensação densa e sufocante, desejo  quente e luxuriante de tomá-las em minhas mãos. Cada movimento que ela fazia, o suave giro do pescoço, os grandes seios inflando-se debaixo do guarda-pó, as belas mãos sobre a cama, os dedos estendidos. Estas coisas me perturbavam, um peso doce e dolorido me arrastando para um estupor. Então o som de sua voz, contido, sugerindo zombaria, uma voz que falava ao meu sangue e aos meus ossos. Lembrei-me da paz daquelas últimas semanas, parecera tão irreal, fora um hipnotismo que eu mesmo criara, porque isto era estar vivo, estar olhando para os olhos negros de Camilla, confrontando seu desdém com esperança e uma lascívia descarada.

(...)

- Como vão todos os seus outros namorados? - falei. 

Disse aquilo sem pensar. Me arrependi na hora. Amaciei com um sorriso. Os cantos de sua boca reagiram, mas com um esforço.

- Não tenho namorados - disse.

- Claro - falei, com uma leve pincelada de sarcasmo. Claro, eu entendo. Perdoe-me um comentário irrefletido.
Ficou silenciosa por um tempo. Fingi que estava assobiando. Então ela falou:

- Por que é tão mesquinho?

- Mesquinho? - falei. - Minha querida garota, sou tão amigo de homem quanto de besta. Não há uma gota de inimizade no meu mundo. Afinal, você não pode ser mesquinho e um grande escritor. Seus olhos caçoaram de mim.

- Você é um grande escritor?

- É uma coisa que você jamais vai saber.

(...)

- Olá - disse.

- Olá, estúpida - respondi.

- Trabalhando?

- O que acha? - falei.

- Zangado? - disse.

- Não, apenas desgostoso.

- Comigo?

- Naturalmente - eu disse.

(...)

- Com medo? - disse ela.

- De você? - eu ri.

- Está com medo - disse ela.

- Não, não estou.

Abriu os braços e toda ela parecia aberta para mim, mas aquilo só
me fez fechar-me ainda mais, levando comigo a imagem dela naquela
ocasião, como estava viçosa e macia.

- Veja - falei. - Estou ocupado. 

- Está com medo também.

- Do quê?

- De mim.

- Imagine...

Silêncio.

- Há algo errado com você - ela disse.

- O quê?

- Você é veado.

Levantei-me e fiquei de pé ao lado dela.

- É mentira - disse.


* Fragmentos de "Pergunte ao pó" de John Fante. Ed. José Olympio, 2011, 10 edição.
* Uma contribuição de Otávio Borba.