quinta-feira, 5 de abril de 2012

DO DIA EM QUE VIREI UM BICHO

Samira Ávila, do Cia Espanca!:


Lembro do ensaio em que a Grace me deu quatro páginas de xerox do capítulo “A viagem” do livro “Perto de um coração selvagem”, da Clarice. Minha Mulher já sabia cair, mas tinha que aprender a se levantar. Eu tinha dificuldades de encontrar forças pra ela. Achava que ela não tinha mais motivos para seguir em frente, para repetir tudo. Aí eu li o texto da Clarice. Fiquei perturbada com a mulher do coração selvagem. Sempre gostei de cavalos. Queria que o grupo se chamasse “Grupo de Cavalos” e já havia decidido há muito tempo que quando eu tiver um cachorro ele vai se chamar “cavalo”. Já tive um cavalo também quando era pequena, mas acho que era mentira do meu pai. E, sim, Clarice: eu iria me arranjar sendo um bicho. Reli o texto.

(…)eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheia de vontades de humanidade, não o passado correndo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei, só então viverei maior que na infância, serei brutal e mal feita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”.

Escrevi muito urgentemente alguma coisa atrás de uma das folhas do xerox e fizemos uma improvisação da Cerimônia das Palmas. Era aquilo. A Mulher nunca ficou tão fraca, era extremamente cansativo tentar se salvar. E se levantar não significava ser forte.

“O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição”.

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