sábado, 17 de março de 2012

Um monólogo

Infelizmente eu não sou tua Ofélia e você, tão pouco, é meu Hamlet. Essa história não merece o frio da Dinamarca. Merece o calor. Um clima tropical, agradável, cheio de flores e outras bobagens coloridas. Uma flor pode brotar de uma pedra, mas não de cubo de gelo. Eu, pelo menos, nunca vi. O importante é que no calor o cadáver apodrece mais rápido. Num instante, o cheiro fétido exala o mais puro fogo fátuo e então urge-se enterrar o defunto. Pô-lo debaixo da terra. Selá-lo de vez no ataúde, antes que a situação se torne incômoda e que a pessoa que um dia amamos e de quem sentiremos eternas saudades se torne um pedaço de esterco, uma carne pútrida, saindo ainda por cima, da obscenidade do corpo morto, fluídos pustulentos e uma orgia de moscas e formigas. É por isso, amor, espero que entenda, que eu quero um dia ensolarado, o sol lindo e pessoas indo à praia.... No frio isso não seria possível. Sabia que Shakespeare vivesse em algum país tropical ele nunca teria feito Romeu e Julieta? Sabia? Por que se Julieta tivesse tomado o veneno, no dia seguinte, seria enterrada viva, e a sua morte seria em vão, movida por um desespero idiota e precipitado, o golpe teatral seria pobre, não seria nem mesmo uma tragédia, seria mais uma fatalidade, tal qual aqueles acidentes de trânsitos, ou aqueles suicídios sem graça, coisa de jornal de qualquer maneira. O frio é bonito. Favorece o isolamento. Pensei em ir à Europa um dia desses. Você se lembra? Você disse que não: problemas de dinheiro. Talvez fosse o problema da vida a dois. Suportar-se demais em troca de um bem estar. Em troca de uma harmonia que nada mais é do que a resignação. A convivência é foda, é uma merda. Quem convive não vive. É aceitar como bem amado alguém que na verdade não passa de um inquilino na sua vida. Você nunca parou para pensar nisso? Deixa para lá. O amor não é belo, meu querido. É o que há de mais animalesco na alma. Amor é uma coisa que chega bem perto do canibalismo. E você sempre se despedia dizendo que me ama. Lembra? Se eu fosse uma pedra, você também falaria a mesma coisa, contanto que estivesse casado com ela. Tanto faz. Aquilo era práxis. Burocracia. Sabe por quê? Não? Por que todo mundo que fala ‘eu te amo’ quer ouvir ‘um eu também’. Isso é burocracia, meu bem, é o puro método. Aritmética! Essa é a palavra! Se tu és o amor da minha vida, eu também sou o amor da tua vida, o que quer dizer que se eu te amar você também vai me amar, justamente por que eu te amo, em tese. Tirando a prova dos nove sempre vai dar zero. Não tem saída. Fala-se exclusivamente o que se quer ouvir. Isso é harmonia, isso é zero. É transar sem se dar a dignidade de receber um tapa sequer, sem ao menos um puxão de cabelo ou uma sacanagem dita laicamente ao pé do ouvido. Não. Eu me nego. É necessário violência. É necessário se aventurar no próprio corpo, ou condenar-se o conviver um domingo de cada vez. Doses homeopáticas de antropofagia. Era disso que eu precisava e você nunca percebeu! Mas ainda não é tarde. Logo hoje: um dia lindo! Você tão carinhoso ao meu lado. Você sempre teve cabelos sedosos. Hoje você não foi trabalhar. Que bom. Fiz a comida que você gosta. Como sempre. A pena é que você só passe o final de semana aqui. Dois dias, acho que três, estourando. Mas não tem problema. Sempre te recebo de braços e pernas abertas. Mesmo se acidentalmente você me deixar com um olho roxo ou se, alterado, você me chame de puta. Tudo sara. Tudo se esquece. Em troca de quê? Da convivência. Conviver é condenar-se. Mas hoje, meu amor, tem cerveja na geladeira. Se exagerares pode me espancar depois. Hoje eu deixo. O roxo na carne, a ardência da mão contida na pele e os palavrões ressoando na cabeça, no chuveiro, tudo vai embora. Toda mulher rogada se confessa com o chuveiro, e lá, deslizando as costas nos azulejos até se sentar no chão, num retorno involuntário a posição fetal, a água acaricia os hematomas e no ralo o corpo se confronta com a incoerência de querer torna-se líquido e desaparecer em qualquer buraco. O banheiro sempre foi a igreja desta casa. Tu sabes muito bem. Mas você não é o culpado. Não se preocupe. Talvez a culpa seja da sociedade. Não sei. Não quero filosofar. Mas não pense que eu sou uma dessas Ofélias. Infelizmente, eu não estou louca. Na verdade nunca estive tão sã. Calculei tudo, como quem faz uma complicada decoração de natal, com enfeites e luzes, passa dois dias imaginando como vai instalar piscas-piscas em toda a casa, põe o plano em prática, liga tudo na tomada e no regozijo de seu espetáculo particular se deleita, como se aquilo, em algum momento, não fosse premeditado, como se aquilo tivesse um quê de magia que só com a energia circulando nos pequenos filamentos de tungstênio fosse possível consumar de vez a obra; como se ao finalizar um quadro o pintor regozijado assinasse seu nome no canto da tela e se não fosse essa pequena assinatura o quadro não teria sentido, seria apenas um nômade; foi desse jeito, com esta apoteose, que vi, aos poucos, a invisível pirotecnia do veneno se diluindo na água, tuas pupilas dilatadas como se tua alma estivesse caindo dentro de um poço, tua baba escorrendo pela boca, a tua tentativa de respirar sem ar no peito, teu último olhar, ternamente desesperado, me interrogando o porquê... ‘você sabe o porquê’, respondia eu, tentando ainda te socorrer, perguntando com lágrimas histéricas ‘o que foi?’, ‘o que foi? Você está bem?’. Teu corpo pesado se repousou nos meus braços, foi se entregando à gravidade, tive que segurar tua nuca, senão ela cedia para trás, aos poucos fui me abaixando, até ficar de joelhos e te ter no meu colo, e lá, com o perfil do rosto comprimindo meus seios sem leite, deste teu derradeiro suspiro tentando não sei se me abraçar ou se me arranhar, mas a morte, enfim trouxe o alento, e depois, aliviado, tu parecias um menino dormindo, parecia que tinhas saído do meu útero... Shhhhhh! Você não ouviu, mas eu também te amo.



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