quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Metal Redondo e Papel Forte

Trecho da peça "Xambudo (outro lugar nenhum)" de Aderbal Freire Filho.

A/ Meus amantes. Esta noite dormirei com aquele que decifrar o enigma da globalização. O homem que deixou de construir sua casa, sua roupa, deixou de fazer sua comida, e que se isolou na pequena coisa que sabe fazer ou quer fazer ou pode fazer, agora cria um sistema para juntar todos a seu serviço. E diz que esse é o único sistema. Quer que todos acreditem nele e não admite que ninguém negue essa verdade de merda. Quando Copérnico disse que a terra girava em volta do sol e não o sol em volta da terra, Calvino gritou irritado: quem se atreve a colocar a palavra de Copérnico sobre a autoridade do Espírito Santo? E a autoridade do Espírito Santo não era nada. Muito menos a do novo deus desse sistema que quer ser definitivo. Que deus é esse? Um ou outro economista de merda, perdido e confuso nas suas contas de chegar. Olhe para os pés dele. Você não vai ver os pés dele. Eu não confio em homem que esconde os pés. E eles, os economistas, escondem os pés sob camadas de peles finas e moles, depois umas peles grossas e duras em forma de canoas, que eles usam desde o nascer até o por do sol. Meus queridos amantes. Vou ler para vocês mais um capítulo do nosso evangelho do Grande Irmão Tuiavii de Tiavéa.
O Sermão dos Mares do Sul sobre o homem branco, chamado Papalagui; capítulo segundo, versículo primeiro. Do metal redondo e do papel forte.A verdadeira divindade do homem branco é o metal redondo e o papel forte que ele chama dinheiro. O dinheiro é o objeto do seu amor, o dinheiro é a sua divindade. Muitos homens brancos há cujas mãos se tornam aduncas e semelhantes às patas da grande formiga dos bosques, à força de manejarem a todo instante o metal e o papel. Muitos há que pelo dinheiro sacrificaram o riso, a honra, a consciência, a felicidade e até mesmo mulher e filhos. O dinheiro é de fato o Deus do papalagui, se a gente considerar Deus aquilo que mais se adora. Quem não tem dinheiro nenhum não pode matar a fome nem mitigar a sede, não encontrará esteira para a noite e será lançado no “fale pui pui” e se falará dele em muitos papéis. Por tudo tens que pagar. Até para nasceres tens que pagar e quando morreres a tua aiga tem que pagar pela tua morte, para poder depositar o teu corpo na terra e pela grande pedra que te põem sobre a tumba, em sinal de recordação. Atira uma peça de metal redondo na areia e verás as crianças precipitarem-se para apanhá-la. De onde vem o dinheiro? Basta que faças uma ação que eles chamam trabalho. “Trabalha e terás dinheiro”, diz uma lei moral dos papalaguis. Mas há uma grande injustiça e o papalagui não quer pensar nisso, pois nesse caso seria forçado a reconhecê-la. Nem todos aqueles que têm muito dinheiro trabalham muito. A coisa é assim: quando um branco tem dinheiro suficiente para a sua comida, para a sua cabana, para a sua esteira e algo mais ainda, manda logo o seu irmão trabalhar para ele, graças ao dinheiro que tem a mais. E quem tem muito dinheiro nada mais tem a fazer do que se deitar na esteira, beber “kava”, queimar seus rolos de fumo, e arrecadar o metal e o papel que outros, com seu trabalho, ganharam para ele. Dizem então os homens: é rico. Invejam-no, adulam-no e falam-lhe com palavras bonitas e escolhidas. Porque, no mundo dos brancos, a importância de um homem não é determinada nem pela sua bravura, nem pela sua coragem, nem pelo fulgor do seu espírito, mas sim pela quantidade de dinheiro que possui ou que é capaz de ganhar por dia. Amontoam o dinheiro que os outros ganharam para eles, o depositam num lugar be guardado e para aí vão carreando sempre mais, até que um dia já não precisam mandar os outros trabalhar para eles, trabalhando o próprio dinheiro no seu lugar. Nunca consegui perceber como isso era possível, sem haver magia negra; e, no entanto tudo se passa assim: o dinheiro multiplica-se como as folhas de uma árvore e o homem até quando dorme vai enriquecendo. E é por isso que eu não percebo por que é que aqueles que não têm muito metal redondo nem muito papel forte tanto se envergonham disso e tanto invejam o homem rico, em lugar de se considerarem, isso sim, dignos de inveja. De fato, assim como é de mau gosto um homem atravancar o peito com muitos colares de conchas, igualmente o será com o pesado fardo do dinheiro. Dificulta-lhes a liberdade de movimentos de que os seus membros necessitam. Palavras do profeta. Queridos amantes, a simplicidade do olhar do profeta esconde muita profundidade. Não é mais possível recuperar o paraíso longe do mundo do papalagui. Todos nós somos papalagui, todos somos homens brancos. Os negros, os amarelos, os mulatos, todos somos homens brancos. Mas se o evangelho Cristão Pornográfico não percebe como o papalagui faz o dinheiro trabalhar por ele sem magia negra, também nós não percebemos como os países ricos fazem os países pobres acreditarem que podem equiparar-se a eles segundo as leis do mercado global sem magia negra. A magia negra, queridos amantes, é a única explicação. Os mega-empresários, as bolsas de valores, o mercado futuro, os meios de comunicação utilizam-se da magia negra para dominar o mundo. É este o segredo da nova ordem mundial: a magia negra, a magia negra (entra em transe).

Um comentário:

  1. "o dinheiro é de fato Deus, se a gente considerar Deus aquilo que mais se adora"

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