quarta-feira, 28 de março de 2012

Eu parei para pensar nisso aqui #3


O palco esta nu. Frio. Um homem entra e se posiciona na baixa da direita. Ele inicia uma série de micro-movimentos. Mãos, braços, ombros, cabeça e quadril estão engajados em comunicar alguma coisa. O que ele quer dizer. Ou melhor, o que ele tenta dizer? A sua boca balbucia palavras inaudíveis. O movimento é gradativo. O homem dança e os meus olhos dançam com ele. Direita, esquerda, direita esquerda. Tudo é circular - é o que parece que ele quer me dizer. De repente, começa a se mover com mais velocidade e o seu corpo transpira. Me perco no corpo molhado deste homem e só o abandono quando, da alta direita do palco, uma mulher surge caminhando. Ela caminha tranquila e se dirige ao centro da alta do palco. De costas para mim ela já não se move mais. O homem continua a dançar, cada vez mais rápido, e a minha atenção se divide entre o corpo dele e a mulher. Ela começa a cantar. A voz é forte e a música é triste. Quero não entender. Mas é impossível. Imediatamente busco um sentido. Concluo: é um paradoxo. Me satisfaço. A relação entre os dois, aos poucos, se transforma em um só quadro para os meus olhos. Não existem mais detalhes. Me acalmo. De supetão, o homem desenraíza os seus pés do chão e em um brusco, porém leve movimento muda o seu corpo de direção. Já não me encara mais. Alívio. Ele traça uma linha reta da direita para a esquerda baixa, cruza com outro homem e pára. Nesse pequeno deslocamento mais outras duas mulheres já entraram no palco. Infelizmente não pude acompanhar suas entradas e só as noto agora. Até o momento são três mulheres e dois homens. Duas delas estão de costas. A outra está de frente. Um dos homens olha para a esquerda. O outro olha para frente. Todos estão parados menos o primeiro homem que continua a dançar. E suar. Ele traça, novamente, uma linha reta da esquerda baixa para a esquerda alta do palco. Durante mais este deslocamento, surgem mais uma, duas pessoas. Um homem que surge e desaparece, mais ou menos umas três vezes, e mais uma mulher que entra e fica parada, olhando para a esquerda. O último homem, finalmente, decide ficar. Na rebarba de sua última entrada ainda uma última mulher adentra o palco. No total são, agora, oito pessoas. Cinco mulheres e três homens. Duas estão de costas, uma olha para frente, a outra para a esquerda e a última para a direita. Dos homens, dois olham para a esquerda e o primeiro homem, o que dá origem a esta narrativa, continua a dançar. Seriam todos eles um só corpo? O homem que dança, dança por todos? Porque diabos ele se movimenta e de onde vem toda essa angústia? Angústia?


Só agora noto que uma placa, ABERTO, pendurada em uma vara do urdimento da caixa preta, mais ou menos na média do palco, está acesa. Quer dizer, ela foi acesa, mas também não pude acompanhar e, por isso, não posso dar certeza do momento em que mais essa pequena mudança ocorreu. O homem, o primeiro, o que dança, traça agora uma linha reta da esquerda alta para a direita alta do palco. Ele passa pelas outras pessoas como quem passa por árvores ou postes ou instituições. Na direita alta do palco, aos poucos, o homem vai parando de dançar. No seu corpo, vestígios de toda a sua movimentação ainda podem ser vistos. Direita, esquerda, esquerda, direita. Tudo é circular. A mulher, a primeira, a da canção tristonha, em algum momento também parou de cantar. O primeiro homem, que já não dança mais, observa quieto as pessoas. Começa a falar. Diz algo a respeito de um velho para o homem que cruzou com ele e que olha para a esquerda. Para uma das mulheres que está de costas ele fala sobre letras e medo. Facas e rodelas é são as palavras que sobram do que ele diz para a mulher que está de frente. Para o outro homem, aquele que surgiu e desapareceu antes de ficar de vez, ele diz alguma coisa sobre um refrigerante e um olho preto. Para a mulher que olha para a direita, conta de um cara que, outro dia, lhe tinha feito uma pergunta. Perguntou se aqui tinha chovido ontem - ele diz. Já para a que olha para a esquerda o assunto perpassa o envelhecimento de nossas línguas. Ele diz algo sobre ordem e mudança. Para a outra mulher que está de costas, a primeira a entrar e a mesma que cantava a triste canção ele diz: você me disse algo que eu não entendi, mas me lembro. 


É preciso dizer que durante a fala do primeiro homem todas as outras pessoas executam micro-movimentos. Todos eles diferentes. Parece também que tentam dizer alguma coisa, contribuir com alguma informação mesmo que desnecessária. São tentativas. Penso. Penso, onde estão todas essas pessoas? Que tipo de lugar é este sombrio e sem direção? Se olham para espacialidades diferentes, o que olham? Será que necessito dessa informação? É uma rede, arrisco, mais uma vez, buscando sentido para o que vejo. A placa de aberto... Estariam todos em café? Em um restaurante? Em uma tabacaria? Que tipo de estabelecimento é este? Será mesmo que eu preciso de uma ficção? Um café, por favor - diz a mulher que olha para a esquerda. Não. Me disseram que era aqui que eu precisava vir - diz a mulher que olha para a frente. Não. É  claro que eu compro uma revista para você - diz o último homem. Não. São realmente mais sete esquinas até a beira do mar? - pergunta a segunda mulher que parou de costas. Não. Eu trouxe a xerox dos meus documentos e me disseram que eu poderia ficar - anuncia o primeiro homem que parou, olhando para a direita. Não. A mulher que olha para esquerda direta: sexo é masculino ou feminino? Não. Eu fico feliz que você tenha conseguir vir...trouxe o que eu te pedi? - indaga a primeira mulher de costas. Não.

"Ficou olhando o quadro de Edward Hopper ali na sua frente, Night life e descobriu pasmada que nunca esse quadro teve tanta significação como nessa noite. O limpo e banal café de esquina de uma rua vazia de Nova York, o café quase vazio (só três pessoas no balcão) com o empregado de uniforme branco-azulado lavando coisas debaixo da torneira, xícaras? A longa fila dos banquinhos vazios contornando o balcão, tudo visto do lado de fora, através da comprida vitrine de vidro. O silêncio sem moscas. O vidro sem poeira.E esse quadro estranhíssimo de um café noturno em alguma esquina de algum beco em Nova York. Havia vermelho, mas nesse café até a cor vermelha era fria. A solidão medíocre." ( Lygia Fagundes Telles - As Horas Nuas)

Todos no mesmo lugar. Juntos, parecem não ter para onde ir. Que imagem buscar? De que cor pintar? Gesto, fala, tudo em um novo movimento? Como prosseguir sem, tão precocemente, ou não, desmanchar o quadro, a estrutura que, penso, é bonita. Para onde ir ou o que virá depois?

são tentativas.
prossigo.

Um comentário:

  1. Esses grandes edifícios de janelas uniformes nos interessam.

    Acho que a luz do neon entra primeiro. Intermitente até se estabilizar. Nesse momento, todo elenco já está em cena com seus micro-movimentos. Me remete muito a entrada do título do filme no cinema. Mesmo que o letreiro em neon não seja um título, acho que o efeito deve ser o mesmo.

    Esse prólogo é quase um stop do fluxo pra mim. É como se pudessemos ver como seriam se não estivessem sendo observados (já que de fato estão. O tempo todo.)

    Isso deles falarem aleatoriamente, sem se olharem, é maravilhoso. É individual. É atropelado.

    Talvez nosso espetáculo fale do banal. Talvez fale do que não é dito.

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