segunda-feira, 12 de março de 2012

Sugestão de texto para o Rafa #2

"A única coisa que a admiro é a intensidade do desespero o momento mais sublime... (...) penso não se dão conta da inutilidade dos gestos penso esse pobre homem parado com seu joelho direito dobrado e calcanhar na parede está assobiando vejo-o tocar seus genitais com dissimulação e penso o que irá fazer agora? caminha uns metros exatamente mais três abraça outro homem sem ter consciência do desespero do momento... (...) Conheço uma amiga que tem uma amiga que não pode ler porque tem medo do vazio entre as letras. Medo de cair... Creio que sim - cair pelo vazio das letras. Tem medo. Terminou empregando-se em uma delicatessen - cortava salame com uma faca grossa. Ficava aliviada ao sentir a densidade do salame cortado por uma faca grossa - Um dia o dono da delicatessen lhe disse que ia ser mais fácil para ela cortar o salame em rodelas na máquina. Mas então o salame cortado na máquina caía rápido demais - sentia que ela caía no vazio toda vez que a máquina cortava as rodelas de salame. (...) Estamos todos tão grudados e imprensados que outro dia ao abrir um refrigerante dei uma cotovelada no senhor que estava ao lado foi ultra incômodo porque deixei seu olho preto. Conto os dias e voltamos isto é infernal e todos contentes! Um cara me fez uma pergunta que conservo em minha memória por ser a única coisa falada entre nós me perguntou se aqui tinha chovido de manhã. Nunca soube o que queria dizer com aqui. Se ele se referia ao meu pequeno espaço de minhas intimidades, ou talvez se referia a algum território mais amplo que já não posso reconhecer - mas que talvez ele imaginasse perto de mim. Não creio - não sei - que ele estivesse se referindo a cidades ou localidades que há tempo não fazem parte de meu mundo - ou de meu interesse. Eu só posso falar de mim. (...) Nós nos demos um beijo intenso - com a intensidade de outras épocas milenárias - minha língua recobrava sensibilidades perdidas - às vezes as línguas envelhecem também - e vão perdendo a sensibilidade - ficam senis - não perdem nem poder nem força mas sensibilidade beija-se o que for. (...) Ouviu alguém dizer que isto não podia continuar assim -  tinha que parar a coisa - impor ordem - um pouco de ordem. Você me disse algo que não entendi mas que lembro... "


A Morte de Marguerite Duras, de Eduardo Pavlovsky

ps: boa parte desta dramaturgia do Pavlovsky não trabalha com a pontuação ''correta''. Mantive os trechos selecionados como no original.

Um comentário:

  1. 'Um cara me fez uma pergunta que conservo em minha memória por ser a única coisa falada entre nós me perguntou se aqui tinha chovido de manhã. Nunca soube o que queria dizer com aqui. Se ele se referia ao meu pequeno espaço de minhas intimidades, ou talvez se referia a algum território mais amplo que já não posso reconhecer - mas que talvez ele imaginasse perto de mim. Não creio - não sei - que ele estivesse se referindo a cidades ou localidades que há tempo não fazem parte de meu mundo - ou de meu interesse. Eu só posso falar de mim. (...) Nós nos demos um beijo intenso - com a intensidade de outras épocas milenárias - minha língua recobrava sensibilidades perdidas - às vezes as línguas envelhecem também - e vão perdendo a sensibilidade - ficam senis - não perdem nem poder nem força mas sensibilidade beija-se o que for.'

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